sábado, 30 de abril de 2011

O casulo exposto: Brasília como ela é

Meu último livro, O casulo exposto (LGE Editora, Brasília, 153 páginas, R$ 28), enfeixa 17 contos ambientados em Brasília, inclusive o submundo político da capital. O fato de eu trabalhar desde 1987 como jornalista na cidade-estado, cobrindo amplamente o Distrito Federal, o Entorno (cidades goianas que o cercam) e o Congresso Nacional, municiou-me da ambientação dessas 17 histórias curtas. O prefácio é do escritor e jornalista Maurício Melo Júnior, apresentador do programa Leituras, da TV Senado, e a capa é assinada pelo artista plástico, cartunista e chargista André Cerino.

O casulo do título do livro refere-se à redoma legal que engessa o Patrimônio Cultural da Humanidade, a borboleta de Lúcio Costa, ninfa golpeada no ventre, as vísceras escorrendo como labaredas de luxúria, depravação e morte nos subterrâneos da cidade dos exilados. A fauna que transita na esfera política e chafurda nos subterrâneos brasilienses é heterogênea, e tenta sobreviver na ilha da fantasia, que arde numa imensa fogueira das vaidades.

Políticos, inclusive daquele tipo mais vagabundo, que não pensa duas vezes antes de roubar merenda escolar; jornalistas se equilibrando no fio da navalha; tipos fracassados e duplamente fracassados; estupradores; assassinos; bandidos de todos os calibres, se misturam, nos contos, numa zona de fronteira fracamente iluminada.

Contudo, a ambientação de sombra e luz tresanda, também, a perfume e a romance.

SERVIÇO

Compra em Brasília - Se você mora na grande Brasília, ou estiver em trânsito, O casulo exposto está à venda em duas lojas da Livraria Leitura: do Conjunto Nacional e do Pátio Brasil, dois shoppings centrais da cidade.

Compra no Brasil ou exterior - Se você estiver em qualquer outra localidade do Brasil, ou do planeta, pode fazer o pedido do livro por meio dos sites das livrarias:

Saraiva - www.livrariasaraiva.com.br

Cultura - www.livrariacultura.com.br

Leitura - www.leitura.com

Pedidos ao editor – Livreiros interessados em fazer pedido de O casulo exposto ao editor devem entrar em contato com Antonio Carlos Navarro, pelo e-mail: lgeeditora@lgeeditora.com.br, ou pelo telefone (55-61) 3362-0008.

Autor - Contate o autor pelo e-mail: raycunha@gmail.com

quinta-feira, 28 de abril de 2011

A caça

Capa de A Caça, com ilustração
de Josélia Costandrade


O conto A Caça foi publicado pela primeira vez pela Editora Cejup, de Belém do Pará, em 1996, num volume de 64 páginas. Em 2008, ele voltou a ser publicado, desta vez na coletânea O casulo exposto, pela LGE Editora, de Brasília. No volume da Editora Cejup, o sociólogo, contista, ensaísta, jornalista e compositor Fernando Canto escreveu a orelha, que segue:

“A obstinação de um professor em busca da filha sequestrada por traficantes de crianças move, com muita velocidade, esta novela de Ray cunha. A Caça flui em linguagem direta, enxuta, que, aliás, é o estilo deste autor inquieto e que manda às favas os adjetivos inúteis, preferindo a ação aos conceitos, com o objetivo de produzir uma narrativa rica e movimentada.

“Como toda boa história, a Caça carrega no seu bojo a condição maniqueísta de homens gastos pelas agruras do cotidiano, em que os mais diversos sentimentos tomam conta dos personagens e fazem permitir que se observe a condição humana a partir de gestos que exprimem a traição e o ciúme, a luta pelo poder e pelo dinheiro, além da clara tensão para ver resolvidos seus problemas e obsessões.

“Ray Cunha sustenta sua casa trabalhando como jornalista, e talvez por conhecer tão bem a redação de um jornal faz conduzir esta história a partir da construção de um personagem-narrador, também jornalista – Reinaldo -, que ressurge após protagonizar A grande farra, primeira novela do autor.

A Caça é uma história bem articulada e de uma ambientação e temática pouco explorada na literatura brasileira, talvez por ser atuais e refletir os problemas que afligem as pobres sociedades latino-americanas. É um livro para ser bebido como um bom scotch, a fim de que o leitor possa saboreá-lo.”


Fazia muito calor. Sonhei que minha mulher e minha filha passavam por mim sem sequer me notar. Iam de mãos dadas com Luciano Mosca. Acordei. O suor escorria abundantemente no pescoço, nos antebraços, próximo às axilas e peito abaixo. Passado algum tempo percebi o som da cigarra. Levantei-me, sob o peso do calor e do sono, gritei pela janela que já ia atender e fui ao banheiro, onde lavei o rosto. À porta da frente dei com o escrivão da delegacia de polícia. A delegada queria que eu fosse lá.

Repassei na memória os acontecimentos das últimas horas. Fora almoçar no Parlamento. Havia sentado à mesa próxima da que Luciano Mosca ocupava sozinho. Roubara minha mulher e minha filha havia três meses. Estava pensando nisso quando os dois homens entraram. Foram rapidíssimos. Um deles descobriu uma pequena metralhadora de dentro de um casaco e deu uma só rajada no peito de Luciano Mosca, enquanto o outro disparou o tiro de misericórdia na nuca. A rajada de metralhadora teve o efeito imediato de derrubá-lo de costas, ainda sentado na cadeira, mas sem matá-lo, de modo que quando o outro pistoleiro encostou aquela belíssima Luger na nuca dele, arregalou os olhos e afastou a cabeça, como se pudesse se livrar da morte. Os pistoleiros não levaram mais de dez segundos para fazer isso. A classe com que o da pistola encostou a Luger na cabeça do meu querido amigo foi coisa de cinema. Tudo aconteceu perto de mim, de modo que pude saborear a execução do dileto amigo Luciano Mosca na primeira fila. Naturalmente fiz que estava aterrorizado.

- Vamos para o jornal - disse a Cavalcante, chefe de reportagem, que havia me convidado para almoçar no Parlamento.

Fomos para o jornal, de onde mandamos um repórter e um fotógrafo para o restaurante. Do jornal, fui para casa.

Depois que o escrivão se foi, tomei banho e fui para a casa de Luciano Mosca. Minha mulher me recebeu na sala. Sentara-se meio de lado numa poltrona. Sentei-me à sua frente. Catarina pousou os olhos castanhos sobre mim.

- Catarina - disse-lhe - vou voltar para Brasília.

Ela me olhou intensamente. Senti que deveria dizer mais alguma coisa, mas tinha medo. Catarina rompeu num choro. De onde eu estava, podia ver seus ombros se sacudindo.

- Vamos com você! - disse. - Nunca mais nos separaremos de você.

Ela dissera justamente o que eu queria ouvir. Se ela houvesse dito que me amava, não teria tanta importância quanto o nunca mais nos separaremos de você.

- Posso ver Lili? - Lili era minha filhinha. Ela estava brincando no seu quarto. Quando me viu, largou tudo e veio correndo para mim, abraçou-me, beijou-me nos lábios, esfregou seu rostinho amado no meu e me perguntou se tinha ido buscá-la e à mãe. Não pude agüentar mais e chorei convulsivamente. Ela, a princípio, se assustou, mas depois tentou me consolar, dizendo que ia me contar uma historinha bem alegre. Engoli o choro, limpei o rosto, sentei-me numa cadeira, com Lili no regaço, e me pus a ouvir a historinha. Era uma que lhe contei tantas vezes que ela acabou gravando. Um conto infantil de Ernest Hemingway. As aventuras de um leão que freqüentava o Ritz de Veneza.

Da casa de Luciano Mosca fui à delegacia de polícia. A delegada, uma paulistana loura, pequena e bem feita de corpo, tinha a voz bem modulada, muito agradável de a gente ouvir.

- Já sabemos que o senhor estava presente ao assassinarem seu colega Luciano Mosca, mas sabemos também que o senhor tinha razões para desejar sua morte... - disse a delegada.

Estava calmo, com a mesma serenidade com que enfrentei todo o drama, desde que Catarina se mudou para a casa de Luciano Mosca.

- Então a senhora já sabe onde eu estava na hora do crime, logo não fui eu quem o matou.

- O senhor é suspeito de ter mandando matá-lo - disse.

- Até prova em contrário, não mandei nada. Acho que vocês deveriam ir atrás dos pistoleiros. Eles dirão quem é o mandante. Levem em consideração que aceitei pacificamente a ida da minha mulher para a casa dele...

- E agora, o que o senhor pretende fazer?

- Voltar para Brasília. Com minha mulher e minha filha.

- Seus planos estão dando certo, não? - ela insinuou. Cadelinha.

- Não há plano algum.

Lembrei-me da primeira vez que vi Luciano Mosca. Eu tinha sido convidado para instalar um jornal diário em Palmas e fora conversar com os donos, no escritório em Brasília, quando ele entrou. Lembrava Jack Nicholson, mas havia alguma coisa errada no seu rosto. Uma espécie de indefinição, como se a tessitura não tivesse sido completada e lhe faltassem alguns traços de arremate. Isso lhe dava um ar vago e perigoso. Tinha largas entradas nos cabelos, era gordo demais para sua altura, talvez 1,65 metro, e se vestia mal. Tratava-se desses tipos que podem se vestir com linho irlandês, cortado por Pierre Cardin, mas que ainda assim continuam parecendo mal vestidos. Apertou-me a mão. Tinha os braços peludos e seu aperto de mão era excessivo e asqueroso, asqueroso todo ele - característica que fui descobrindo cada vez mais, à medida que trabalhamos juntos todo aquele ano.

Catarina era amante do editor do jornal onde eu trabalhava em Brasília, e Rafael e eu éramos como irmãos. Naquela época, já andava apaixonado por ela, mas me mantinha sob absoluto autodomínio e jamais desrespeitei minha amizade por Rafael. Vivia, então, sozinho, num pequeno apartamento no centro de Taguatinga. Um dia, recebera um telefonema inesperado. Era Catarina querendo saber se eu estava em casa. Parecia chorosa. Aguardei-a ansiosamente. Fora meu dia de folga no jornal e pensava ir ao teatro à noite. Estava pronto para sair quando ouvi o telefone. Sentei-me à sua espera. Servi-me de um bom gole de whisky. Shivas. A bebida lavou meus nervos. Já estava flutuando quando ela chegou. Catarina era muito linda. Media 1,70 metro e pesava 50 quilos.

Depois que acabou de contar o que acontecera, ficamos em silêncio. Meu vizinho, o que gostava de Caruso, estava a ouvi-lo. A voz do tenor varava a janela e vinha roçar nossos sentidos, doce, pianíssima, sépia. Cheirava a zínias amarelas. Pousava no regaço de Catarina, nas suas mãos, nos seus lábios vermelhos, nos seus olhos, no caos dos seus cabelos.

- Estou verdadeiramente surpreso - disse-lhe. - Mentira. Já sabia de tudo. Rafael se fora para Londres com a família. - Durma aqui - disse-lhe, timidamente. Ela estava confusa - como um passarinho no meio de uma tempestade. Precisava de abrigo e ficou em casa. O resto aconteceu sem preâmbulos, sem meias palavras. Tinha somente uma cama. A minha. Uma boa cama de casal. Havíamos bebido além da conta e estávamos deitados um ao lado do outro, conversando sabe Deus o quê. De repente, silenciamos e ficamos assim durante certo tempo.

Eu pensava. Repassei, na minha memória, alguns momentos com Catarina e Rafael. Saíamos muito juntos. Íamos beber em algum bar, íamos a cinema, a teatro. Sentia-me feliz por poder compartilhar sua companhia, aspirar seu cheiro, tocá-la, às vezes. Ouvi-la. E sentia remorso por Rafael. Estava pensando nisso quando senti um toque de Catarina. E então a noite se tornou um mergulho num mundo de vertigens, onde o  prazer, de tão vivo, sangra.

Casamo-nos passados alguns dias.

Da delegacia voltei para a casa de Luciano Mosca. Sentei-me sozinho na sala. Catarina fora dar banho em Lili e arrumar as coisas. Eu estava pensando na briga que tivéramos na manhã do dia em que Catarina me abandonou. Foi a primeira briga de nossas vidas.

Naquela época, não largara ainda a esperança de me tornar escritor profissional. Uma neurose. Sabia que não havia chance para mim. Sempre me faltava tempo para escrever. Tinha de sobreviver como jornalista. Estava enganando a mim mesmo. O escritor, ou é de primeira, ou não é nada. Um escritor de primeira faz como Hemingway, que ignorou o jornalismo no tempo certo e começou a escrever todos os dias, mesmo passando privações. Lembro-me do que disse Faulkner: “Um escritor de primeira está sempre escrevendo alguma coisa. Só precisa de papel e lápis, e, se for possível, de um pouco de whisky”. Pois é, chegava em casa, trancava-me e ia escrever uns contos, que reescrevi até encerrá-los numa gaveta. Quem sabe um dia não volte a eles?

Catarina não é do tipo de mulher que fica relegada a segundo plano. Mas creio, hoje, que um casamento depende muito da administração do homem. Naquela época, poderia escrever todas as manhãs, ir para o jornal à tarde, editar a primeira página cedo, que é como fazia, e ir para casa, para os braços de Catarina e de Lili. Podíamos ler simplesmente, a dois, que é como gostávamos. Ou fazer amor. E sempre podíamos viajar nos fins de semana. Dinheiro no bolso: essa era a razão pela qual saí de Brasília para morar em Palmas.

Pois bem, ela andava saturada com esse negócio de eu querer virar escritor. Que virasse, mas que soubesse também administrá-la. Na verdade, eu vivia no jornal. Amanhecia o dia e me sentia ansioso para chegar logo à redação. Queria fiscalizar a pauta. Acabava almoçando por lá mesmo e quando chegava em casa, achava de me trancar para escrever. A gota d’água foi naquela noite em que, bêbedo, fui visto com uma repórter. Quando cheguei em casa, às cinco da manhã, encontrei Catarina acordada.

O vento que vinha do leste, descendo pelas fraldas dos montes em torno da cidade, naquele ponto, levantava a poeira vermelha que cobria os jardins mortos de girassóis esturricados e os fragmentos de prédios tortos, em construção. Às vezes, o vento cessava subitamente. Então vinham os mosquitos. Gostava de ouvir o som do vento e sentia prazer de estar bem abrigado. Construíra uma boa casa. Essa era uma das razões por que fora parar ali. Em Brasília, jamais teria uma casa igual aquela. Era um sobrado. No segundo andar, havia quatro quartos: o meu e de Catarina, o de Lili e dois quartos de hóspedes. No térreo, havia um salão, uma sala de estar, uma ampla cozinha e dependências de empregada. Estava tomando um cafezinho quando Catarina entrou na cozinha, naquela madrugada.

- Bom dia, escritor classe A. Você dormiu bem com sua amante?

- Trabalhei até tarde - disse-lhe.

- Não me trate como uma imbecil! - ela gritou.

- Acho que tu deverias dar uma volta no Rio de Janeiro, para rever tua família e passear um pouco. Ou então ir a Brasília. Isto é sufocante mesmo. Acho que ficaremos aqui só mais um ano. Então terei juntado dinheiro para pôr a pequena editora que planejo ter. Poderemos ir para o Rio, Pedra de Guaratiba. Lá há aluguéis baratos - disse.

- Você não entende, Reinaldo. O problema não é Palmas. - Fiquei com a pulga atrás da orelha. - Não fui feita para ficar em segundo plano. Você só sabe dizer em seus poemas que sou uma fêmea, uma potranca, mas parece que você só fica excitado no nível literário.

- Tenho estado a trabalhar... - tentei me defender.

- Tenho estado a trabalhar! O grande escritor tem estado a trabalhar nas repórteres do jornal. Pelo menos tem gente que daria tudo para trabalhar em mim - disse, venenosa.

Eu sentia uma ressaca mortal. Subi, escolhi um dos quartos de hóspede e adormeci. Dormi todo o dia e acordei no começo da noite. Senti falta de Catarina e a procurei em nosso quarto. O telefone tocava. Atendi. Era Catarina. Telefonou para avisar que estava na casa de Luciano Mosca. Fora para ficar.

Permaneci sentado na cama, pensando. Lembrei-me das rosas que de vez em quando via em casa e não me ocorria perguntar a Catarina de onde vinham. Certa vez, numa festa na casa de Luciano Mosca, surpreendi-o com os olhos velados em cima da minha mulher e, pouco antes de irmos embora, notei o comportamento estranho de Catarina. Não foi difícil descobrir que Luciano Mosca dera um jeito de envenená-la com sua baba: cocaína.

A princípio, quis me desesperar. Talvez não fosse difícil ter minha filha de volta. Mas queria tudo.

Luciano Mosca era também carioca, assim como minha mulher. Quando o conheci em Brasília, tinha vindo do Rio, contratado para me ajudar em Palmas. Ficara acertado o seguinte: eu teria a palavra final na instalação do jornal, embora o poder de mando fosse dividido entre Luciano Mosca e eu. O Diário do Tocantins era um projeto modesto, executado sem grandes problemas, já que pude levar para Palmas uma equipe de primeira, muito bem paga. Luciano Mosca quase não ia ao jornal. Só vivia no Parlamento, sempre na companhia de uns sujeitos que jamais eram vistos novamente. Foi o primeiro de nós a erguer uma casa. Um casarão. Trajava-se sempre com roupas de linho, mas parecia um palhaço dentro delas. Toda semana havia festa na sua casa. Como já disse, fui a uma dessas festas. Senti que alguma coisa estranha acontecia ali.

Tomei banho e saí. Fui ao jornal. Precisava ter uma conversa com Luciano Mosca. Meu pai era caçador profissional e herdei dele a paciência do caçador. Minha estratégia seria a paciência, enquanto agiria. O prêmio: minha mulher e minha filha.

Naquela hora da noite não havia quase ninguém na redação. Tinha estabelecido uma rotina de fechamento que começava às quatro horas, com uma reunião dos editores, quando definíamos a primeira página. Às sete horas, todas as editorias já estavam fechadas. A primeira página fechava às oito. Às nove, o primeiro caderno ia para a rotativa. Às onze, os dois cadernos do jornal já estavam embalados. Dessa forma, chegávamos cedinho às cidades mais importantes do estado, a Brasília e a Goiânia.

Luciano Mosca já havia ido embora. Sentei-me na redação e fiquei olhando um pouco para a parede. Depois, me levantei, bebi água, servi-me de um cafezinho e fui para minha sala. Iria à casa de Luciano Mosca? Telefonaria para lá? Catarina estaria correndo alguma espécie de perigo que exigisse minha presença com urgência? Precisaria de mim naquele momento? E minha filha? Acho que passei meia hora pensando nessas coisas. Olhei para o relógio: 11 horas. Por fim decidi telefonar. Quem atendeu foi Luciano Mosca.

- Quero falar com minha mulher - disse-lhe.

- Ela não quer falar com você - respondeu prontamente.

- Nesse caso vou aí.

- Para que?

Senti raiva, mas me contive.

- Vou à polícia. O caso é seqüestro, meu querido Luciano Mosca.

Ele ficou silencioso. Depois fez a ameaça.

- Eu não faria isso. Você é inteligente. A Catarina vai para o Rio e precisa levar um negócio para mim. - Senti um calafrio. Imaginava do que se tratava. - Ela não quer ver você. Preciso apenas que ela vá ao Rio. Depois, então...

Continuei calmo.

- Que história é essa? - perguntei.

- Estou metido numa encrenca das grossas. Se não der certo o que quero, todos nós embarcaremos juntos. Sua filha também. Por isso vamos continuar calmos e fazer o jornal fraternalmente - disse o canalha.

- Mas o que está acontecendo? - perguntei de novo

- Acontece que você poderá ficar viúvo e duplamente de luto, isso se você não for para o paraíso também.

- Vou, agora, à polícia. É seqüestro e tráfico de droga...

- Eu não faria isso. Já disse, só preciso que ela vá ao Rio daqui a três meses.

Houve silêncio. Depois Catarina falou.

- Esqueça-me, Reinaldo. E não se preocupe com Lili. Não venha aqui. - O que dizia chegava muito vago ao meu cérebro, ferido pelo ciúme.

- Não estou entendendo - disse.

- Não me procure mais - ela disse, e desligou o telefone.

Fui para casa. Passei o resto da noite perambulando pelo quarto, cheirando algumas roupas de Catarina e de Lili, que estavam por lá, jogadas, até que começou a amanhecer. Então me deitei e só acordei meio-dia. Tomei banho, tomei café bem forte e depois suco de laranja e fui para o jornal. Luciano Mosca ainda não havia chegado, mas fora visto no Parlamento. Fui para lá. Avistei-o da rua. Estava na companhia de dois sujeitos que nunca vira. Dei ré no carro e estacionei. Esperei durante duas horas, antes que eles saíssem. Luciano Mosca continuou lá; só os dois tipos sinistros que estavam com ele haviam saído. Embarcaram num carro novinho, um Gol, e foram para o Outro Mundo Hotel. Fui atrás.

Eu me dava com o dono do Outro Mundo, um japonês afável, que vivia rindo. Ele me recebeu no seu escritório. Disse-lhe que precisava descobrir quem eram os dois tipos que acabara de seguir. Descrevi-os. Ele mandou buscar o livro de registro. Um, chamava-se Juan Alamiro e o outro, Mario Sanchez, ambos bolivianos. Nunca tinham estado em Palmas. Chico era mesmo um japonês pra lá de bacana. Três horas depois, os bolivianos saíram. Entrei no quarto deles e descobri duas coisas que me deixaram gelado: passaportes colombianos e um quilo de cocaína da melhor qualidade. Eu conhecia bem a droga. Tinha curso e um pouco de experiência. Não estava difícil entender que os caras eram do Cartel de Medelín, ou de outro cartel qualquer. Luciano Mosca fazia parte da rota da cocaína vinda da Colômbia com destino ao Rio de Janeiro e queria pôr minha mulher no negócio. Catarina cheirava coca junto com Rafael, mas quando foi viver comigo deixara o vício. Podia ter voltado agora. Basta um trago para o viciado em tabaco voltar a fumar. A regra é geral.

Mas por que Catarina não estava querendo falar comigo? Ou estaria na casa de Luciano Mosca por livre e espontânea vontade, ou estaria sofrendo forte pressão. Por Deus, por que Catarina não voltava para casa?

Deixei o hotel e fui para o jornal. Luciano Mosca estava lá. Fui direto para minha sala e mandei chamá-lo. Entrou com ar de que estivesse seriamente prejudicado por mim.

- É melhor que ela fique durante algum tempo em casa - disse, antes que eu falasse qualquer coisa. - Ela está muito magoada com você. - Ele agia como se fosse um velho amigo da família. Um padrinho de casamento, com direito a se meter onde não devia e tudo.

- Já fui à polícia. Eles fizeram uma visita a seus amigos que estão no Outro Mundo. Vou preveni-lo: se acontecer alguma coisa à minha mulher e à minha filha vou matá-lo.

Luciano Mosca ficou pálido. Mas não foi pela ameaça de morte e sim quando disse que a polícia fora ao Outro Mundo. Tinha puxado, como um autômato, o 45 que usava na capanga, mas acho que se alguém o viu através do vidro, pensou talvez que ele estivesse me mostrando a arma.

- É o fim, idiota - disse. - É o fim - repetiu. - Agora todos nós vamos rolar feio.

- Guarda essa arma - eu disse, afastando o cano do 45. - Não fui à polícia ainda. Mas espero que tu sejas sensato.

Ele respirou aliviado e guardou o revólver.

- Assim é melhor - murmurou. - É o seguinte, Reinaldo, fique calado. Já disse que você vai ter sua mulher de volta. Fique calado, ou sua filhinha vai ficar pesada de chumbo. E não sou eu que vai recheá-la. Tem muita gente para fazer isso. Está em jogo uma fortuna. Fique calado. Calado, entende? Elas estão sendo bem tratadas. Bem tratadas até demais. Não sabem de nada, é claro. Catarina pensa que você não a quer mais. No fim, tudo ficará bem, entende?

Queria pular sobre ele e acabar com aquela agonia ali mesmo. Mas, não. Sorri e lhe disse que afinal estava tudo bem. Que deveríamos fazer a primeira página e até lhe ofereci um cafezinho. Lembro-me de uma vizinha que tínhamos, quando era criança, que dizia: “Quem quer pegar galhinha não diz xô!” Mas o caso era mais complicado do que imaginara. Eu poderia ir à polícia, resolver a questão com Luciano, pegar de volta minha mulher e minha filha. Ele não me intimidava. Mas e suas ameaças? Estaria blefando? Catarina estaria dormindo com ele? Olhei para seu rosto inexpressivo e meu estômago embrulhou.

Enquanto fechava a primeira página, Luciano Mosca estava muito prestativo. Refazia chamadas sem discutir. Próximo de encerrarmos o trabalho, ouvi-o assobiando. Pensei que ele ia para casa e que lá estaria Catarina. E o inferno voltou insuportável.

Catarina estava um pouco abatida. Tentava aparentar uma vivacidade que não sentia, e mostrava dois sintomas preocupantes: tinha o olhar ora brilhante, ora opaco, e um timbre agudo na voz. Algo estava acontecendo. Consegui ter um encontro com ela quatro dias depois de ter saído de casa. Avistamo-nos no Outro Mundo, numa salinha atrás do escritório do bom Chico.

- Catarina - disse-lhe - se queres viver com Luciano Mosca eu nada tenho a ver com isso. Mas quero minha filha de volta. Foi seqüestro...

- Ela pensa que está na casa de um tio. Deixe-a ficar comigo. Você sabe o quanto eu a amo. Estará bem comigo. Vou defendê-la de tudo.

- Tudo o quê?

- Do que possa lhe acontecer. - Olhou com raiva para mim. - Até porque você não teria tempo para ela, como não tinha para mim. Além disso, não quero que fique com um velho bêbado e depravado.

Olhava-a perplexo.

- O que se passa dentro daquela casa? - perguntei.

- Nada demais.

- Está bem - disse-lhe. - Se tu queres assim...

- Eu não queria...

- No primeiro momento em que tu te sentiste contrariada caíste fora. - Disse-lhe. - Passamos quatro anos juntos e nesses quatro anos sempre procurei ser tolerante contigo.

- Tolerância! - disse ela. - Como se uma mulher vivesse de tolerância. Uma mulher precisa de respeito e carinho. Você sempre defendeu a fidelidade conjugal e foi se meter com uma reportezinha vulgar. Você acha que é respeito meter-se dias a fio numa sala fechada para escrever nada? Você e seus livros que não são escritos nunca...

Ali estava eu, diante de uma fêmea ressentida e metida num barulho ensurdecedor. Precisava, mais do que nunca, dos meus nervos. Eles tinham de estar bem azeitados a fim de que eu resistisse àquilo. A impressão que Catarina me dava, agora, era de uma mulher profundamente entediada na frente do seu homem. Uma mulher que queria ver seu homem a mil quilômetros de distância. Seu olhar era um bocejo. Fazia sentir-me um escritorzinho dos mais baratos, incompetente tanto para escrever quanto para conquistar o coração de uma mulher. Além disso, por mais sinistro que fosse o que se passava na casa de Luciano Mosca, se não houvesse aquiescência por parte de Catarina ela não daria conforto ao meu inimigo e, estou certo, procuraria colaborar para que aquele caso ficasse esclarecido.

- Ó! estou aqui com você e você está dormindo - ouvi-a dizer, tirando-me de minhas elucubrações. Não havia dúvida, tratava-se de uma mulher ressentida, e é melhor a gente ficar longe de uma mulher assim.

- Quero ver minha filha - disse-lhe. - Ou a vejo ou vou à polícia, ao governador, ao diabo.

- Aja com inteligência, Reinaldo - disse.

- Mas, afinal, o que diabo você vai fazer no Rio?

E com isso pôs ponto final na conversa, se levantando e caminhando para a saída. Tentei retê-la. Inútil. Fiquei ainda muito tempo naquela sala. Não sei quanto. Acho que estava cochilando quando Chico me tocou.

- Tenho novidade - disse. - Acaba de se hospedar aqui um sujeito que fez várias perguntas sobre Luciano Mosca. Ele quer ver você.

Avistei-me com o estranho ali mesmo, enquanto Chico nos servia chá. Chamava-se Aranha e, por incrível que pareça, era a cópia de uma caranguejeira. O paradoxo é que, apesar disso, era extremamente simpático.

- Acho que vou passar uma temporada aqui - disse. Trajava-se com uma calça de linho e camisa de seda. A calça fora encomendada. Tinha a cintura larga, ajustada pelo cinto, mas era estreita nos quadris, quase não permitindo que ele, se quisesse, pusesse a mão no bolso. O alfaiate modelara as pernas levemente boca de sino, cobrindo um par de sapatos negros, Pierre Cardin, impecavelmente limpos. A camisa de seda fora comprada feita, era estampada e brilhava muito.

- Soube que o senhor é amicíssimo do meu também caro amigo Luciano Mosca. Na verdade ele não sabe o quanto o estimo e queria, com a ajuda do amigo...

- Reinaldo.

- Com a ajuda do amigo Reinaldo, queria dar ao Luciano Mosca um presente inesquecível. Digamos: uma marca. Sim, uma marca. Como, por exemplo, arrancar-lhe um membro, ou um olho. Não. Detesto ver pessoas sem olho. Lembram-me gatos cegos - disse Aranha, demonstrando que era falador e espirituoso. Interessei-me de pronto pela conversa.

- Em que posso servi-lo, meu senhor? - perguntei, com real interesse.

- Soube que o senhor é vítima de uma trama, como direi?, diabólica. Oh! não. Diabólica não. O termo é muito pesado. O senhor estaria passando por um drama; um melodrama com lances de dramalhão. Sou aficionado pelo teatro grego, meu jovem. Sou professor aposentado. Lecionava em Belém, onde conheci meu querido Luciano Mosca, e onde desapareceu minha filha única, então com três anos, e que se chamava Sol. Solange.

Dito isso, calou-se e pareceu muito emocionado. Na penumbra da sala, agora acentuada pelo anoitecer, os olhos de Aranha brilhavam, úmidos, quando ele os ergueu para mim. Pegou-me amigavelmente no braço.

- Não vai acontecer com o senhor... - disse-me.

Naquela noite, durante o fechamento do jornal, Luciano Mosca me estudava como um cientista que abre um cadáver para compreender tudo. Até cantarolei e o tratei com indulgência quando me apresentou um título errado.

- A aranha tece sua teia - disse-lhe, num dado momento. Ele me olhou surpreso. Apontei, então, para o teto, onde uma pequena aranha tecia, laboriosamente, a teia. Nesse momento, uma dessas moscas que viajam às tontas, à noite, voou cegamente em direção à armadilha e lá ficou se debatendo. Voltei os olhos para o meu trabalho, sem me importar com o olhar que caiu sobre mim e ali ficou, grudado na minha cabeça durante vários segundos.

Amanheci com insuportável saudade de Lili. Lavei o rosto demoradamente, preparei um café forte e meio amargo. Bebi-o puro. Telefonei. Saí a seguir. A casa de Luciano Mosca ficava um pouco distante da minha. Peguei meu velho fusca e dirigi-me, sem pressa, para lá. Era um casarão com as varandas em estilo colonial. Imitação grosseira, como tudo o mais em Luciano Mosca. Parei o carro atrás de uns arbustos e fui de pés até o portão. Estava pensando em Aranha. Que sujeito estranho! Estranho até no nome. Mas o extraordinário era que ele, se isso é possível, lembrava imediatamente uma aranha caranguejeira. A repulsa que isso pudesse me causar era atenuada pelo seu modo cortês de falar. Fiquei intrigado com aquela história do sumiço da sua filha. Intrigado e com a pulga atrás da orelha. Aparentemente não havia ninguém na casa. Pulei o muro. A porta da frente estava trancada. Contornei o prédio e forcei uma janela. Estava aberta. Pulei a janela e me vi numa grande sala vazia. Não tive dificuldade para achar a escada. Subi. Realmente não havia ninguém. O quarto de Luciano Mosca era amplo. Sobre a cama vi uma camisola de Catarina. Foi naquele instante que a realidade, com toda sua crueza, apareceu diante de mim. Ora, quanta ilusão, Catarina não voltaria para casa. Era amante daquele sujeito. Luciano Mosca estava apenas querendo me assustar com aquelas ameaças. Fosse lá como fosse, Catarina estava ali por livre e espontânea vontade. Não havia chantagem alguma que a mantivesse naquela casa. Não tive mais nenhuma vontade de ficar ali. Voltei sobre meus passos, pulei a janela, encostei-a, pulei o muro e entrei no meu fusca. Estava pondo a chave na ignição quando o Landau de Luciano Mosca passou na estrada. Ia sozinho. Deixei-o entrar na casa para sair do meu esconderijo, e fui para o jornal.

O sumiço da filha do Aranha não me saía da cabeça. Será que Luciano Mosca estava metido também no tráfico de crianças? Podia ser. Nesse caso Lili estaria correndo perigo sem que Catarina desconfiasse de nada. Mas por que diabo ela me largou para ficar com um bandido daqueles? Já tinha pensado nisso muitas vezes e mais uma vez revi tudo, detalhe por detalhe. O fato é que Catarina estava levando, a meu lado, uma vida extremamente sem graça. Suas noitadas com Rafael foram substituídas pela religiosidade que era viver comigo. Meus longos silêncios e o isolamento, quando ia escrever, deixavam-na furiosa. Para completar, a diferença de idade - eu com 47 e ela com apenas 23 anos - punha um abismo entre nós dois. Abismo porque estava sempre insatisfeita comigo. A ida para Palmas piorou tudo. A gota d’água foi ter sido visto com a repórter do jornal. Luciano Mosca, que estava à espera, deu o bote.

Aranha me aguardava. Quando cheguei, levantou-se e me deu um forte aperto de mão. Simpatizava muito com ele. Enquanto bebíamos um cafezinho, conversamos banalidades. Neste momento Luciano Mosca entrou na sala. Aranha não se abalou. Apresentei-os. Aranha levantou-se, cumprimentou Luciano Mosca e disse que estava a seu dispor. Pedi ao amante da minha mulher para comandar a reunião de editores e convidei Aranha para almoçar comigo. Fomos para o Parlamento.

- Espero que o senhor abra o jogo comigo - disse-lhe, um pouco nervoso. Ele bateu no meu braço, afavelmente. Tínhamos pedido peixe. O peixe, ali no Parlamento, era uma delícia.

- Tomei a liberdade de pedir algumas informações sobre o senhor - disse. Soube que tem uma filha de três anos. Eu também tive uma filha. Sabe, ela desapareceu e nunca mais a vi. A Polícia Federal investigou e nada. Já faz bastante tempo. Quinze anos. Sou viúvo. Minha mulher tinha morrido não fazia muito tempo quando Sol, Solange, desapareceu. No início quis ficar biruta. Depois reagi e resolvi investigar. Levara Sol para a escola naquela manhã. Quando fui buscá-la, tinha desaparecido na hora do recreio. Tratava-se de uma garotinha ruiva e linda como a mãe. Sou professor aposentado, como já lhe disse, mas lecionava por prazer. Minha família tem recursos, de modo que pude casar-me com uma das mulheres mais linda da alta sociedade belenense, e minha filha herdou toda a beleza da mãe. Era tão linda que não podia passar despercebida.

O céu estava nublado. Um bando de periquitos passou. Aranha ficou em silêncio. Eu aguardava.

- Vou pedir uma garrafa de cerveja - eu disse, mais para quebrar o silêncio.

- Pois bem - voltou ele -, as investigações da Polícia Federal não levaram a nada, mas as minhas conduziram-me a alguma coisa. O rapaz que seqüestrou minha menina fora visto por três pessoas diferentes: uma servente, um vendedor de pipoca e um professor. Não havia dúvida de que tratava-se do mesmo homem. Leves entradas na testa, olhar ligeiramente vago e alguma coisa estranha no rosto, como se tivesse se submetido a uma cirurgia plástica, sem êxito. É claro que a descrição das pessoas que o viram não foi exatamente assim. Uni os dados e construí um rosto, um estilo. Depois disso, selecionei alguns hotéis e saí em busca de um homem que nunca vira e do qual não sabia o nome. Tive de distribuir gorjetas generosas para chegar até os livros de registro. Entre aqueles nomes todos, a pessoa que mais se aproximava do que eu procurava havia se registrado como Ismael Silveira. Esse mesmo Ismael tinha esquecido um envelope no hotel, o qual, por incrível sorte, ainda estava lá, na sala do gerente. Não vou entrar em detalhes para não ser cansativo, mas consegui pôr as mãos no envelope. Tive que gastar uma pequena fortuna para conseguir isso. Dentro do envelope havia um bilhete que dizia o seguinte: “Quero criança ruiva”. Só isso. Mas no verso havia um nome: Luciano Mosca. Procurei a Polícia Federal com esses dados. Foi inútil. Não conseguiram localizar ninguém com esse nome. Simplesmente não havia, no Brasil inteiro, alguém que se chamasse Luciano Mosca. Lendo um número velho do Diário do Tocantins, que me chegou às mãos por acaso, topo com um nome que me deixou paralisado: Luciano Mosca - editor executivo.

Lembrei-me que seu nome saíra no primeiro número do jornal. Depois ele exigiu que fosse retirado do expediente.

- Quero que o senhor me ajude a encontrar minha filha - ele disse, súplice. - Só pode ser esse sujeito o raptor da minha filha. Não pode ser outro. Tem de ser ele. Tudo leva a crer nisso: a calvície, o olhar vago, alguma coisa imprecisa no rosto e o nome incomum, Luciano Mosca. Temos de agir com cautela, sem espantar o homem. Preciso saber onde está minha filha.

Parei de mastigar, limpei a boca, pus o guardanapo na mesa. Ele esperava. Servi um pouco de cerveja para nós dois. Era uma garrafa de Antarctica. Estava deliciosa. Estendi por sobre a mesa a mão para Aranha.

Não tínhamos muito com que começar. Dali do Parlamento fui para casa. Fazia um calor de rachar. Tomei banho. Pus o Concerto para Piano e Orquestra em Ré Menor, de Mozart, no toca-disco, e me deitei um pouco para ouvi-lo. Aquela música era a redenção de tudo. Mas, quando acabou, a realidade voltou a fustigar minha memória. Era noite quando saí de casa e fui para o jornal. Luciano Mosca já havia começado a primeira página. Notei que tinha um “joelho”. Neste instante Aranha entrou na sala e pediu para falar comigo a sós. Luciano Mosca e o diagramador já iam saindo quando os chamei.

- Vou precisar sair um pouco - disse. - Luciano Mosca, risca de novo a página. Aquela não serve.

- Por quê?

- Há um “joelho” nela.

Ele ia dizer alguma coisa, mas chocou-se com meu olhar. Em toda essa história, devo dizer que jamais agi fora de mim. O máximo que aconteceu foi ter demonstrado meu desespero no olhar.

- Há uma novidade no caso - disse Aranha. Tínhamos saído pelos fundos do prédio e caminhamos um pouco por um cerrado. Estava escuro. Aranha era uma silhueta que se movia como um grande aracnídeo no estreito caminho do matagal.

- O senhor não tem medo de que Luciano Mosca desconfie e descubra tudo? Ele não saberá quem é o senhor? - perguntei-lhe.

- Não se preocupe com isso. Meu nome é Francisco das Chagas Maiorana Caixeta. A fim de investigar Luciano Mosca assumi a forma de um aracnídeo - disse ele, estendendo-me uma barba postiça rala. Neste momento a lua cheia deixou-me ver e permitiu-me divisar Aranha. Ali estava um rosto ainda jovem e determinado. Mais do que nunca simpatizei com ele. - Apesar da seriedade do problema, gosto de jogar com humor. As aranhas adoram mosca - disse.

- Engenhoso - comentei.

- Mas vamos à novidade: hoje à tarde, ao chegar ao hotal, soube que havia lá um americano. Fiquei à espreita. Pois bem, o tipo pediu um carro e foi levado à casa de Luciano Mosca. Sei disso porque conversei, discretamente, com o motorista.

Pensei um pouco, mas aceleradamente.

- O senhor estaria disposto a seguir esse americano aonde quer que ele vá?

- Estou.

- A idéia é essa: o senhor o seguirá, mesmo que ele vá para a Cochinchina, quanto mais para os Estados Unidos. Ele deve ser o elo do tráfico de crianças. Não percamos o contato. Eu ficarei aqui, de olho em Luciano Mosca. E aproveitarei para fazer uma incursão mais proveitosa à casa dele.

- Pode deixar comigo. Cuidarei direitinho da minha parte. O gringo não me vai escapar. Tenho recursos para ir aonde quer que seja e falo fluentemente inglês, francês e espanhol.

Apertamo-nos as mãos no escuro. A lua voltara para detrás da grande nuvem negra que flutuava sobre nossas cabeças. Não demorou muito para que o aguaceiro desabasse. Quando voltei para o jornal, Mosca já havia desenhado outra página e selecionara como manchete a temporada de verão, que começaria oficialmente no dia seguinte.

No outro dia, levantei cedo, tomei o habitual café forte e fui para meu posto, atrás dos arbustos, de onde podia ver o movimento na casa de Luciano Mosca. Ele deixou a casa às sete horas. Às dez, Catarina e minha filha saíram no pequeno Fiat de Catarina. Esperei dez minutos e dirigi-me para o portão. Catarina o deixara aberto. Experimentei a porta da casa. Trancada. Dei a volta e dirigi-me para a janela por onde entrara da outra vez. Estava novamente só encostada. Entrei e observei que a janela não tinha trinco. Fui direto para o quarto de Luciano Mosca. Nem olhei para a cama. Abri a gavetinha do criado-mudo. Não vi nada que me chamasse atenção. Depois experimentei uma cômoda. Na última gaveta que abri havia um envelope. O que continha me deixou paralisado. Eram fotos minhas nas mais inimagináveis posições sexuais com a repórter que despertara ciúmes em Catarina. Acostumado a manusear e editar fotos, notei de pronto que a montagem tinha sido um trabalho de mestre. Então fora por isso que a repórter desaparecera.

Ainda estava ali, vendo aquelas fotos abomináveis, quando ouvi barulho de carro. Coloquei tudo de volta no lugar e desci correndo as escadas. Antes que eu chegasse à janela, Luciano Mosca já havia aberto a porta da sala. Só deu tempo de eu entrar atrás de uma longa cortina. Ele se serviu de uma bebida e andou de um lado para outro. Demorou-se quinze minutos e tornou a sair. Pulei a janela, corri para o portão, que desta vez fora fechado a chave. Escalei o muro e pouco depois estava dentro do meu carro, a tempo de ver Catarina e Lili chegarem. Ela encontrou o portão fechado. Certamente esquecera-se de suas chaves, porque voltou a entrar no Fiat e a sair. Quanto a mim, fui para o jornal. Tinha de ficar de plantão para me comunicar com Aranha. Eram três horas quando ligou do aeroporto de Porto Nacional. Embarcaria dali a trinta minutos para Brasília. Estava colado no americano e já descobrira que seu destino era Buenos Aires. Aranha fez reserva no mesmo hotel do gringo. Chico foi da maior importância nisso tudo, pois fizera a reserva para o americano e comunicou tudo para Aranha. Agora, era só seguir o gajo em Buenos Aires e ver aonde ele iria parar.

Naquela altura, por intermédio do Cavalcante, descobri que a repórter com quem me envolvera estava em São Paulo. Telefonei para um amigo meu da Folha e lhe pedi o favor de localizá-la. Eu precisava encontrá-la a qualquer custo, levá-la a Palmas e armar um encontro com Catarina.

Naquela noite sonhei com meu pai. Estávamos há três horas à espera da caça, acomodados atrás de uma formação cerrada de arbustos. Não havia lua, mas o céu estava estrelado e o Cruzeiro do Sul parecia um navio, sólido, navegando no azul noturno. Eu podia sentir o prazer do meu pai, através do silêncio, de estar ali, quieto, à espera da caça.

- A vida é um jogo - disse-me, certa vez. - Sempre perdemos tudo no final. Resta-nos jogar o melhor que podemos. Somos premiados aqui e ali. São os momentos de prazer. Caçar é também como viver. A caça está ali fazendo parte do jogo. Veio para o nosso prazer. E matamo-la da melhor maneira possível.

Meu pai dava preferência por grandes predadores. Caçara na África, na Índia, na Amazônia, onde morreu sozinho, de ataque cardíaco, numa caçada a onça em Nhamundá. O princípio filosófico de meu pai era aplicado em Luciano Mosca. Quando nos movemos pela raiva, perdemos toda a razão, porque a raiva é incontrolável. Ao passo que se agirmos pelo prazer de jogar, movemo-nos em plena lucidez, o que afasta todos os riscos de erro. Era preciso armar a teia como se desenha a planta de um edifício. Essa é a natureza do jogo.

Estávamos ali esperando a caça. A selva, naquele ponto, assemelhava-se a um grande animal nos espiando. Podíamos sentir quando nos farejava. Ouvimos um esturro. Depois outro esturro e mais outro. A selva voltou ao silêncio. Era uma onça macho de três metros da cauda ao focinho. Estava bem alimentada e não sentira nossa presença, pois o vento estava a nosso favor. Meu pai ergueu-se e foi até a margem oposta do riacho. O animal o olhou e rosnou, e ficaram ali, durante alguns segundos, antes que o gato desse o bote. Papai adorava matar bichos no ar e já fora campeão, num torneio nos Estados Unidos, de tiro ao pombo. Usava uma carabina Rossi, de grosso calibre. Foi um tiro perfeito. O chumbo varou pelo céu da boca e foi alojar-se no cérebro de Luciano Mosca.

Quase para amanhecer o dia sonhei que estava sentado numa cadeira, sozinho no meio de uma enorme sala. Numa das extremidades estava Luciano Mosca, sentado atrás de uma mesa, sorrindo para mim. Então acordei. Fiquei acordado não sei quanto tempo, tentando não pensar em Catarina e em Lili. Às vezes, quando Lili acordava à noite, vinha para nossa cama. Então eu cheirava seus cabelos meio ruivos e fazia carinho na maciez do seu corpinho. Ela aconchegava-se a mim, ou à mãe, e voltava a sonhar.

Levantei-me, tomei um comprimido de Anador e voltei a me deitar. A droga não demorou a fazer efeito. Dormi profundamente e sonhei que acabara de ser laureado com o Prêmio Nobel de Literatura e que um repórter me procurava-me para me entrevistar.

- O senhor é um jornalista que queria ser escritor, ou sempre foi escritor? - perguntou-me. - O que o senhor pretende fazer com o dinheiro que vai ganhar com o Prêmio Nobel? Vai doar a alguma instituição de caridade para menores de rua? - perguntou-me, sem esperar resposta à primeira indagação.

- Não sou santo - disse-lhe. Darei um bom destino ao dinheiro. Há muito tempo que desejo comprar uma casa na orla marítima fluminense.

- Mas o senhor nem sequer tem um livro escrito! Como fará para receber o Nobel?

Então comecei a pensar naquele problema. Teria que escrever pelo menos dois livros bons, como Juan Rulfo. Luciano Mosca entrou na sala trazendo um classificado marrom. Dentro, havia os originais de um livro de contos.

- O Nobel é meu - ele disse. Sentara-se à minha frente e fitava-me, sorridente. Peguei uma Mailincher, que estava encostada à minha cadeira, e fiz pontaria. A onça havia saltado sobre mim.

Acordei alagado de suor. Sentei-me na cama de um salto. Passei a mão no rosto e deixei escapar um soluço. Meia hora depois estava no jornal. Havia um recado para mim, do Aranha.

O anoitecer parecia um tumor, latejando nas ruas purulentas do cais de Buenos Aires. Fazia frio. O americano entrara num bar, numa das ruelas perdidas no emaranhado de prédios que se erguem às margens do rio da Prata, fóssil indiferente ao entardecer mortal. Dentro do bar o ambiente estava aquecido. Havia um casal numa mesa e, no balcão, além de um homem que parecia não existir, o americano bebia whisky.

Aranha sentou-se também num banquinho. Livrara-se da barba postiça e pusera um lustroso bigode, óculos de lentes brancas e fumava um Coiba. Um homem sem sotaque e provavelmente sem pátria o atendeu. Quando voltou, com o Johnnie Walker, Aranha brincava com cinco notas de dez dólares. O homem fez que não viu. O americano olhou para um lado e outro, levantou uma porta no balcão e sumiu nos fundos do bar.

- Procuro diversão - disse Aranha.

- Que tipo? - o homem perguntou, limpando o balcão.

- Gosto de mulheres ruivas.

O homem olhou para o dinheiro e voltou para o banco, atrás do caixa. Pareceu pensar um pouco. Depois voltou.

- Escute, quem lhe disse que aqui há garotas ruivas? - perguntou, no seu espanhol indiferente. Aranha tinha substituído as notas de dez dólares por cédulas de cinqüenta dólares. O homem desta vez olhou firme para o dinheiro.

- Na verdade, prefiro meninas - disse-lhe Aranha.

O homem desapareceu nos fundos do bar.

- Escute, onde o senhor arranjou essa história de crianças ruivas? - perguntou, logo depois que voltou lá de dentro.

- Vou abrir o jogo - disse Aranha. - Sou brasileiro. Rico. Vou muito aos Estados Unidos. Estive lá recentemente. Na Flórida. Tomei conhecimento de uma espécie de clube onde podemos realizar todos os nossos sonhos. O senhor já ouviu falar em Marquês de Sade?

O homem não respondeu. Pegou o dinheiro das mãos de Aranha e fez um gesto com a cabeça. Aranha entrou pela porta do balcão, passando por uma cortina de contas. Atravessou um pequeno e escuro corredor e foi dar numa sala. O homem do bar fechou a porta atrás de Aranha. À sua frente, na penumbra, uma silhueta extremamente gorda arquejava atrás de uma imensa escrivaninha. O americano estava sentado, à direita de Aranha, com as pernas cruzadas, em silêncio.

- Sente-se - disse o gordo. - Somos aqui um clube extremamente secreto. Não sei como o senhor soube... Mas não importa. Vamos investigar sua vida. Se o senhor for aprovado entrará no clube. Se não, terá de morrer, compreende?

- Tudo pelo prazer - disse Aranha, e o gordo sorriu.

Aranha de fato fora aos Estados Unidos e estivera na Flórida. Além de acompanhar todo tipo de matéria publicada nos jornais de todo o mundo sobre tráfico de menores, lenocínio e tudo o que dissesse respeito a esse assunto, andara investigando nos últimos três anos uma conexão tênue entre vários recortes de jornais do Brasil e Estados Unidos. Descobrira uma espécie de clube fechado de milionários.

- A taxa de iniciação é de dez mil dólares - disse o gordo.

A coisa ficara acertada para a noite do dia seguinte. Aranha teria, assim, tempo para levantar o dinheiro. Mas era o tempo perfeito para fazer o que de fato pretendia. Na manhã seguinte - manhã de sol - dirigiu-se a um prédio decrépito. Bateu numa porta. Um sujeito pôs a cara na fresta da porta entreaberta. Reconheceu-o e abriu a porta. Pouco depois Aranha deixou a casa com uma maleta, pegou o carro que alugara e foi para o hotel.

Já havia dado dez horas da noite quando ele chegou ao bar. Não havia mais nenhum freguês. Sorriu para o homem atrás do balcão e lhe estendeu uma nota de cinqüenta dólares.

- Não vou tomar mais muito seu tempo. Só vou conversar com o sr. Wanderley. Acho que não vou demorar.

- Ora, não se preocupe - disse o homem, servindo-lhe uma dose de Johnnie Walker -, já estou indo. O sr. Wanderley tem a chave e vai embora depois. Fique à vontade.

Aranha não chegou sequer a provar a dose de whisky. Foi logo chamado. A sala estava bastante fresca. O gordo tirou uma garrafa de Chivas de um armário sob a escrivaninha e ofereceu um gole a Aranha.

- Então o senhor é versado em Marquês de Sade? - quis saber.

- Gosto muito dele - disse Aranha. - Sobretudo 120 Dias de Sodoma.

- Oh! Eu adoro! Adoro! Sobretudo quando ele fala daquelas criancinhas fazendo xixi no pênis daquele padre - arquejou o gordo. - Tenho um negócio aqui que o deixará louquinho. Sabe, nossas casas estão espalhadas pelo mundo. São para uma elite - disse, abrindo uma gaveta e tirando um envelope. - Veja!

A primeira foto que ele mostrou era de dez meninas, entre cinco e onze anos, nuas, lado a lado, numa passarela. A foto seguinte mostrava uma garotinha acorrentada numa cama. A terceira fotografia deixou Aranha paralisado. Três homens seguravam uma criaturinha magrinha e o gordo, que estava ali na frente de Aranha, tentava vazar um dos olhos da criancinha com uma agulha de crochê. Aranha não agüentou mais. Tirou de um coldre peitoral o 45 cano curto, já com silenciador, e apontou para a cabeça do gordo.

- Não se mova - disse. O gordo tentou mover a perna direita e levou um tiro na coxa. Aranha havia levantado da cadeira e estava do lado do sr. Wanderley. Embaixo da mesa havia uma espécie de pedal. - Levante-se devagar e ande para cá. Isso! Agora estenda a mão. - O gordo o obedeceu. Aranha havia aberto a maleta, que tinha quatro algemas. Aranha conseguiu prendê-lo na janela de grade, numa escápula, que estava ali sabe Deus por que, na perna da escrivaninha e ao pé de um armário, de modo que o gordo ficou em pé, de pernas e braços abertos, gemendo. Depois Aranha foi até o bar. Não havia mais ninguém. Voltou para a sala e se sentou. Bebeu um gole longo de whisky. Guardou as fotos no envelope.

- Vou lhe fazer umas perguntas. Responda a todas elas - disse para o gordo.

- O senhor é da polícia?

- Cale-se. Apenas fale quando eu mandar. Onde estão os arquivos da sua organização?

- Que arquivos?

- O senhor prefere morrer de chumbo quente ou de beliscão?

O gordo pareceu pensar um pouco.

- De beliscão - disse.

Aranha tirou de dentro da maleta uma tesoura de cortar grama e sem mais conversa ajustou-a nas costelas do gordo e apertou. O gordo deu um berro terrificante e logo uma mancha de sangue foi se formando na sua camisa. Aranha voltou a sentar-se.

- Como ia dizendo, onde estão os arquivos?

- No cofre. Aquela gaveta debaixo é um cofre. A chave está comigo, no bolsinho da calça. O que o senhor procura? Poderei ser útil, mas tire-me daqui, pelo amor de Deus.

Aranha abriu o cofre. Ali havia centenas de fichas. Logo se familiarizou com a ordem em que se encontravam. Sol. Solange. Ali estava a ficha. Ali estava a carinha. Aranha tirou-a chorando e estendeu-a ao gordo.

- Esta, onde está?

- A ficha diz tudo, senhor.

De fato. Tudo estava ali.

Aranha se sentou e pôs-se a ler a ficha. Quando terminou, chorava copiosamente. Chorou bastante. Talvez durante cinco minutos. O gordo o olhava em silêncio. Terminou de chorar. Secou os olhos e limpou o rosto com um lenço impecável, de linho branco. Depois levantou os olhos para o gordo.

- Onde está minha filha? Solange... Aqui diz que ela foi reservada para o senhor. Era uma garotinha ruiva. Foi seqüestrada no Brasil, na Amazônia. Belém do Pará.

O gordo ficou pálido. Aranha pegou um molho de chaves que estava sobre a mesa e pôs-se a abrir as gavetas da imensa escrivaninha. Numa delas encontrou um arquivo de fotos. Lá no fundo havia um envelope onde se lia Solange. Abriu-o. Suas mãos tremiam. Quando as fotos caíram sobre a mesa, um bafo quente, fedorento, diabólico, perpassou por si. Ali, à sua frente, estava seu inferno, a via crucis de uma criança nas mãos de um covarde. Sol! Oh! Sol da minha vida!

- Onde a enterraram? - perguntou, com a voz estranha dos suicidas.

O gordo permanecia mudo.

- Vou fazê-lo falar.

Aranha deu a volta à mesa, abriu a maleta, tirou uma tesoura, um bisturi, linha cirúrgica, agulha e o material usado em pequenas cirurgias. Pôs tudo sobre a mesa. Depois, com a tesoura na mão, pôs-se a cortar a roupa do gordo. Cortava-a com certo desvelo.

- O que o senhor vai fazer? - perguntou o gordo.

- Castrá-lo.

- Não faça isso, pelo amor de Deus. Direi tudo o que o senhor quer saber, mas diante da palavra de que me deixará em paz.

- Está bem. Fale, então.

- O senhor me dá a palavra de que me deixará em paz?

- Juro! Por Solange. - Dito isso, Aranha sentou-se, à espera de que o gordo falasse.

- Ela foi encomendada para um americano qualquer. Não tenho culpa, digo-lhe. É meu negócio. Foi encomendada. Então Luciano Mosca foi incumbido de conseguir uma menina ruiva. Ele estava em Belém do Pará. Acabou caindo a escolha na menina. Ele, às vezes, atende a nossos pedidos. Ela chegou aqui. Era muito bonita. - Daí para diante o gordo não conseguiu mais contar nada que fizesse sentido.

Aranha tirou da maleta uma garrafa com clorofórmio e algodão. Depois tirou um aparelho de barbear e fez a barba do gordo, limpou seu rosto com álcool e pregou-lhe, sobre a boca, uma fita adesiva larga. Finalmente começou a castrá-lo. Em seguida, vedou-lhe o ânus com cola Superbond, furou um buraco na fita que lhe tapava a boca e entornou um litro de óleo de rícino. Passando um pouco, Aranha tirou a fita da sua boca.

- Onde ela foi enterrada?

- Deixe-me, pelo amor de Deus. Deixe-me. Mate-me. Tenha piedade... - e, num assomo de raiva: - Ela foi dada aos cães.

Aranha pregou uma fita nova na boca do gordo. Depois vazou os olhos dele. O gordo se transformara num volume monstruoso. Um estranho cansaço apoderou-se de Aranha. Ele tirou as luvas, saiu dali. No bar, tomou um gole de Chivas. Depois foi embora. O dia amanhecia. Uma mancha rosa espraiava-se sobre o porto, clareando-se vagarosamente. Ao chegar ao hotel, jogou-se na cama do modo como estava e ali ficou até o anoitecer, numa espécie de torpor.

Naquele mesmo dia, de manhã cedo, cinco cartas chegaram a seu destino. Uma delas foi parar nas mãos do editor do La Nacion. A segunda, às mãos do chefe de polícia de Buenos Aires. A terceira carta foi enviada para o embaixador dos Estados Unidos na Argentina. A quarta, para o embaixador do Brasil. E a quinta, para a embaixada da Inglaterra, endereçada à Interpol. Aranha ficou em Buenos Aires até o dia seguinte. A manchete do La Nacion dizia: “Desbaratada quadrilha de traficantes de crianças”. Bem, agora restava Luciano Mosca. Queria acabar com aquilo de uma vez por todas. Depois, bem, depois...

Aranha estava meio de lado. Sem a barba, seu queixo tinha nobreza. Estava escanhoado e com um tom azul brilhante, devido à brancura cadavérica do seu rosto. Parecia sorrir. Teria encontrado Sol? Sim. Gosto de pensar que sim. Agora ele poderá brincar com Sol nos jardins do paraíso. É assim que gosto de pensar. Naquele momento odiei profundamente Luciano Mosca e não pude e nem queria me controlar e chorei. Chorei por Sol, por Aranha, por minha pequena Lili, por Catarina. Aranha chegara naquela noite. Combinamos, por telefone, que nos encontraríamos no Outro Mundo. Escrevera, a caminho de Palmas, uma carta para mim. Assim que chegara, deixara-a com Chico. Nela, contava tudo, detalhadamente, passo a passo, o que ocorrera em Buenos Aires. Além da carta, havia também a ficha de Sol, e as fotos. Sua alma não suportara mais. Luciano Mosca ficou para mim. “Sim, Aranha, deixa-o comigo. Luciano Mosca é meu. Obrigado.”

Acho que Luciano Mosca não desconfiava de nada com relação a Aranha, mas andava alerta, porque lera na Folha de S.Paulo sobre a desarticulação da quadrilha a qual pertencia. Bom, só tinha, agora, de eliminá-lo. Estava pensando nisso quando recebi o telefonema. Pouco depois fui ao Outro Mundo. Chico levou-me a um quarto. Havia dois homens. Um, era o americano que Aranha seguira. O outro, que estava fazendo a barba, era um colombiano. Fazia com visível prazer a barba, sentado no toucador. Manejava a navalha com impressionante precisão.

- Sente-se - disse o americano, em fluente português. - É melhor que a gente vá direto ao assunto. Sabemos que Luciano Mosca queria levar sua filha para o Rio de Janeiro e de lá para Buenos Aires, de onde seria remetida para Miami. Ela seria aproveitada como uma vaca. Depois de satisfazer velhos libidinosos, seus órgãos seriam vendidos. - Ele fez uma pausa. - Desculpe o modo chocante como estou falando. Vou dizer-lhe uma coisa que vai surpreendê-lo: não somos traficantes de crianças, nem de drogas. Somos uma espécie de organização. Um esquadrão da morte. Identificamos traficantes de crianças e os matamos simplesmente. Eu e Rugiero também fomos vítimas deles. É uma história longa...

- Luciano Mosca está alerta, escorregadio como um peixe - disse o colombiano, num espanhol agradável de se ouvir. - Está acuado e vigilante no jornal. A polícia também está alerta. Sabemos que ele é perigoso e atira muito bem. Pedimos-lhe que nos ajude a matá-lo.

Tinha ouvido tudo aquilo em pé. Sentei-me. Rugiero voltou a se barbear. Fazia aquilo com extrema delicadeza. O americano olhava-me fixamente.

- Aranha nos fez um favor. Um imenso favor - disse. - É um herói, sabe?

- O que os senhores querem que eu faça?

- Leve Luciano Mosca ao Parlamento, para almoçar. Hoje.

- E depois?

- Depois, pegue sua mulher e sua filha de volta.

- Levantei-me. Não precisei dizer nada. Eles leram nos meus olhos... Fui ao escritório de Chico. Ele sabia de tudo. Tinha três filhas. Eram lindas criaturas. Chico telefonou para o jornal. Luciano Mosca estava lá. Não saía mais do jornal.

- É Chico. Do Hotel Outro Mundo. Tenho uma coisa para lhe dizer. É um recado que me incumbiram de dizer ao senhor. Mas não posso fazer isso agora. No jornal também não. O senhor tem de sair do país. Tenho de lhe dizer como sair.

Quando cheguei ao jornal, Luciano Mosca já não estava mais. Cavalcante preparava-se para ir almoçar.

- Vamos almoçar no Parlamento? - convidou-me.

Fiz que não me interessava pelo convite.

- Acho que vou comer meu arroz com frango em casa.

- Ora, vamos. Tem caldeirada de tucunaré, hoje, lá.

Fui.

O resto foi tudo muito rápido. O americano disparou a rajada de metralhadora. O colombiano deu o tiro de misericórdia com a mesma delicadeza e presteza com que fazia a barba. Cavalcante e eu fomos para o jornal e mandamos um repórter e um fotógrafo para o restaurante. De lá, fui para casa. Cavalcante fora avisar minha mulher da morte de Luciano Mosca. Tinha a missão especial de esclarecer a questão das montagens fotográficas.

- Nunca dormi com Luciano Mosca. Na noite em que você estava com a repórter, recebi um telefonema anônimo. Peguei meu carro, com Lili dormindo no banco detrás, e fui ao Bar Cabana. Avistei você se beijando com a repórter. No outro dia, você estava dormindo quando recebi outro telefonema. Havia uma encomenda, urgente, para mim, no Bar Cabana. Voltei lá e me entregaram o envelope com aquelas fotos. Fiquei encolerizada. Depois, me senti humilhada. Naquele momento Luciano Mosca apareceu. Agiu como um cavalheiro. Levou-me para sua casa. Deu-me um pouquinho de pó. Disse-me que era melhor eu ficar lá. Aconselhou-me também a ir ao Rio. Eu estava tão confusa... Levou-me em casa. Você continuava dormindo. Apanhei roupas minhas e da Lili e fui para a casa de Luciano Mosca - disse-me Catarina.

- Ele nunca fez nenhum comentário especial sobre Lili? - perguntei.

Pensou um pouco.

- Como assim? Ah! sempre dizia que ela valia ouro.

Naquela tarde, quando fui chamado na polícia, pedi para ver o corpo de Luciano Mosca. Agora, que estava morto, o que tinha de sinistro morrera também. A indefinição de seu rosto evidenciara-se de tal modo que até podíamos saber de onde provinha. O lado direito era maior do que o esquerdo. Observando de perto, víamos que fora submetido a uma cirurgia plástica. Bati de leve na sua bochecha.

- Tchau, garoto - disse-lhe. - Lembranças a satanás.

O americano e seu colega sumiram como que por encanto. Provavelmente via aeroporto de Palmas. Se havia alguém interessado neles, não era eu.

As luzes de Brasília foram devolvendo a vida à minha alma. Trouxéramos apenas duas maletas. Todo o resto ficara em Palmas. Cavalcante, a quem pus no meu posto no jornal, ficara incumbido de vender tudo, inclusive a casa. Eu tinha algum dinheiro que nos permitiria ficar durante um mês num hotel. Nesse meio tempo veria o que fazer da minha vida. Fomos à livraria do aeroporto e compramos um mundo de revistas. Depois jantamos e nos empanturramos de sorvete na sobremesa. Então pusemo-nos a planejar para que hotel iríamos. Naquela noite dormimos todos juntos na grande cama. Acordei de madrugada. Catarina respirava serenamente. Parecia uma criança. “As mulheres são crianças grandes” - pensei, aspirando o perfume dos cabelos arruivados de Lili. Levantei-me. Procurei meu caderno de anotações, acomodei-me como pude e comecei a escrever.


Taguatinga, 1994