terça-feira, 12 de abril de 2011

A grande farra

A grande farra, capa de Olivar Cunha
Comecei a trabalhar no livro de contos A grande farra em 1975, em Manaus, e só o publiquei 17 anos depois, em 1992, em Brasília. Na época, eu era editor do de-vez-enquandário Gazeta de Taguatinga. A equipe gráfica do jornal diagramou e paginou (ainda havia paginação e fotolito) o livro e um empresário ligado à empresa patrocinou sua impressão, e assim A grande farra foi publicado, com 27 contos em 153 páginas, hoje, à venda apenas em sebos. A maior parte dos contos de A grande farra, juntamente com mais algumas dezenas de outras histórias curtas, serão reunidos num grande livro, a ser publicado até 2012.
Morando já em Brasília, ocorreu algo semelhante ao que houve na criação do conto Outono, publicado neste blog sob o marcador “Conto”. Passei três dias vendo a seguinte cena: era o fim do dia, naquele momento em que o mundo começa a mergulhar na noite, e ouvimos o som imóvel das sombras, de dentro das quais emergia as costas, leitosas, de uma jovem mulher, meio curvadas, à espera de algo terrível, as lambadas de corda de um homem atarracado que se preparava para surrá-la.
Ao cabo de três dias, incomodado com a visão, pus-me a escrever, a partir da cena pugente, e saiu um conto de uma só assentada, redondo. É o que se segue.
Pedido de casamento
O homem prepara-se para lambar a menina. Ela estava encolhida, de costas para ele, tremendo como um passarinho molhado. Era um homem atarracado e terrível com aquela corda dobrada em duas nas mãos. As costas da menina estavam nuas e ela procurava, chorando, cobrir-se com uma bela, grande e felpuda toalha rosa. A toalha, com sua cor rosa, confundia-se com a pele da menina, naquele anoitecer doce e brando. Ela tremia e seus ombros sacudiam-se, num soluço discreto e resignado. Havia mais tristeza do que ódio naquele som delicado que lhe escapava dos lábios. Havia também perplexidade e prenúncio de terror impotente. Então ela virou-se para o homem e o encarou, com seus olhos brilhantes dentro da mancha escura do anoitecer. Parecia, mais do que nunca, uma criança que, sem escapatória, fica triste como um passarinho ferido, e o ferimento está nos seus olhos, em um misto absurdo de resignação e atrevimento, olhando o carrasco.
A primeira lambada soou insuportável, com o som odioso da violação, a que seguiu-se um lamento rouco, um som desconhecido, a alma chorando.
O homem atarracado preparou-se para vibrar de novo a corda, mas não houve outra vergastada. O dono da propriedade viera e segurou a corda no momento em que ia refir de novo a pele, que agora flutuava, encantadoramente branca, no escuro que se abatia no banheiro da casa onde o caseiro morava com sua mulher e aquela filha.
- Seu Edevaldo, quero falar com o senhor um só instante, por favor! Venha, por favor! Um só instante... – disse o dono da propriedade, que era um escritor e vivia ali, onde encontrava privacidade para escrever.
O homem parou um segundo e olhou para seu patrão.
- Vou mata-la! – disse.
O olhar do escritor, que se chamava Francisco de Oliveira, era suplicante, mas também determinado. Era o olhar bom dos homens bons e fortes. Vencido por esse olhar, seu Edevaldo jogou a corda no chão e saiu do banheiro. A jovem ficou lá. Agora , a brancura suave da sua pele era um toque impressionista na noite. Seus soluços soavam doces, quase música, e Francisco ouviu-os dentro de si até que, á beira-mar, os dois homens pararam e puseram-se a ouvir o marulhar das ondas na areia. Francisco sabia por que a jovem ia ser castigada. Queria dizer alguma coisa para estancar o ferimento do amigo, queria retê-lo ali, mas os dois homens estavam mudos. Apenas o mar cantava sua música.
- Ela está grávida – disse o pai, ferido, sem olhar para o escritor.
Francisco o conhecera no mar, depois de mudar-se para Pedra de Guaratiba. Um dia, durante  uma tempestade, os dois homens naufragaram e passaram três dias flutuando agarrados ao resto da embarcação. Não fosse o vigor do velho, Francisco teria desistido de viver.
O mar exercia seu fascínio sobre eles. Francisco ofereceu um dos seus Hilton ao velho, acendeu-o e o convidou a sentar-se sobre umas pedras ali próximo. Ambos puseram-se a ouvir o mar, fumando com muito prazer. Francisco esperava o momento para dizer ao velho que Eleonora ficaria linda grávida e que agora eram sogro e genro.
O mar estava manso, sob a lua cheia.
- Tenho de lhe dizer uma coisa que poderá torna-lo meu inimigo ou unir mais ainda nós dois – Francisco deixou sair aquilo de um só fôlego.
O velho olhou-o sem compreender; depois, compreendendo, ficou boquiaberto, e finalmente caiu num torpor, deixando-se ficar ali e procurando não pensar em nada.
- Ia pedir a mão de Eleonora no dia do meu aniversário, que será segunda-feira...
O velho continuava calado.
- Peço-lhe agora a mão de Eleonora. Vamos casar-nos amanhã mesmo, com a sua permissão.
O velho ainda não falou nada.
- Agora, por Deus, f ale alguma coisa...
O velho pigarreou.
- Ela é tudo o que nós temos, seu Francisco, é o nosso futuro. Quando vi ela grávida, vomitando muito, fiquei louco. Pensei logo que a menina tinha se perdido. Mas sendo assim, eu dou meu consentimento. Só não sei como o senhor, sendo letrado desse jeito, pode se casar com ela.
Francisco, ouvindo-o, deu um suspiro de alívio.
- Eleonora é bonita, trabalhadora e inteligente, seu Edevaldo. É ela a mulher de que preciso para mãe de meus filhos.
Agora, os dois amigos estavam comovidos e foram procurar um bar onde pudessem comemorar o noivado.
Enquanto bebiam, enquanto a noite avançava docemente entre os gemidos do mar, Francisco pensava em Eleonora. Haveria de beijar a marca da corda nas suas costas tão brancas. Haveria de beber seu leite e de prender seus cabelos na mão, a fim de morder seus ombros, e haveria de ouvir seus gemidos, quase um choro, quando ela estivesse gozando.

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