sábado, 22 de outubro de 2011

O prazer de ser lido

Este blog completa um ano, hoje, 22 de outubro de 2011. Foi criado graças à insistência do artista plástico brasiliense André Cerino, um dos que, em todo o planeta, melhor utilizam os recursos da Web. Antes de 22 de outubro de 2010, eu já havia publicado sete livros, de poesia e ficção, e, desde 1975, venho assinando artigos, crônicas e contos em jornais impressos da Amazônia e de Brasília, mas nunca fui tão lido como nesse último ano.

Creio que isso aconteceu por dois motivos: meus livros sempre tiveram edições não comerciais, pequenas tiragens, e contaram com distribuição rarefeita; também os jornais em que trabalhei eram de circulação local, sendo que os mais expressivos foram A Crítica, de Manaus; O Liberal, de Belém do Pará; e Correio Braziliense, de Brasília. Assim, meus trabalhos de criação e jornalísticos jamais saíram de um pequeno círculo.
A segunda razão é a Web. A Wikipédia explica didaticamente o que é a Web: “World Wide Web (que em português significa Rede de Alcance Mundial; também conhecida como Web e www), é um sistema de documentos em hipermídia que são interligados e executados na internet. Os documentos podem estar na forma de vídeos, sons, hipertextos e figuras. Para visualizar a informação, pode-se usar um programa de computador chamado navegador para descarregar informações (chamadas "documentos" ou "páginas") de servidores web (ou "sítios") e mostrá-los na tela do usuário. O usuário pode então seguir as hiperligações na página para outros documentos ou mesmo enviar informações de volta para o servidor para interagir com ele. O ato de seguir hiperligações é, comumente, chamado de "navegar" ou "surfar" na Web”.
Pois bem, desde que inaugurei meu blog, até as 9h30 de hoje, já fui lido 8.553 vezes, o que equivale à média de mais de 23 leituras por dia, em países da América do Sul, América do Norte, Europa, Ásia e África. Os dez países onde tive mais leitores são: Brasil, 7.381; Estados Unidos, 472; Alemanha, 135; Portugal, 102; Espanha, 91; França, 67; Reino Unido, 38; Rússia, 21; Cingapura, 19; e Paraguai, 18.
Meus trabalhos mais lidos são: a crônica Terno de linho, publicada em 11 de dezembro de 2010, com 254 leituras (creio que devido ao fato de que a poeta e jornalista Alcinéa Cavalcante publicou-a no seu site - www.alcinea.com -, o mais lido do estado do Amapá, aquele que Zé Sarney anexou ao Maranhão); o artigo Jovem espetada num gancho de açougue, nua, estuprada e ainda viva, publicado em 16 de abril de 2011, sobre exposição, em Brasília, do genial Fernando Botero, com 102 leituras; o poema Belém do Pará vista da janela do sétimo andar de um hotel, no início da madrugada, publicado em 15 de agosto de 2011, um buquê de rosas colombianas vermelhas que oferto a um dos meus grandes amores: Belém do Pará, com 79 leituras; e a crônica Mulher no chuveiro, que escrevi para minha esposa, em 15 de outubro de 2009 e publiquei no blog em 1 de dezembro de 2010, com 68 leituras.
O maior prazer do escritor é ser lido. Mesmo que um escritor crie e engavete sua criação, paira sempre no ar tênue corrente nervosa - a perspectiva de ser lido. É como o prazer do pintor em que suas telas sejam objetos de longo olhar; quase como a caminhada dos amantes no infindável labirinto do sexo. Assim, oferto aos meus leitores estes átomos acelerados de vida, esta Declaração de amor:
Ela nasceu para o esplendor, povoa um mundo em que só há perfume das virgens ruivas, o Concerto Para Piano e Orquestra, em Ré Menor, de Mozart, e azul, tão azul que sangra.
Namoro com ela em todas as oportunidades, quando saio e quando chego em casa. Desde que ela nasceu, acompanho seu embelezamento, seus banhos de sol e sua nudez, cada vez mais esplendorosa, entregue aos carinhos da brisa, das borboletas e dos beija-flores.
Nasceu sozinha, sobre longo caule, que escorei firmemente para que o vento não a perturbe. Consciente de que as rosas não vivem muito tempo, procuro apreciá-la em todos os momentos que posso, namorando-a intensamente. Ela não me dá importância, é claro, pois as rosas só se importam com o sol, mas deixa que a olhe e que cuide do caule que a sustenta. E depois, desconfio que ela saiba dos meus sentimentos, pois, quando a olho, se torna ainda mais bela.
Já comecei a me preparar para quando ela se for. Procuro me convencer de que as roseiras do meu jardim ainda me proporcionarão um sem número de emoções. Mas ela é tão esplendorosa! Na sua juventude, era amarela. Gabriel García Márquez ficaria apaixonado se a visse. Agora, madura, se vestiu completamente de rosa.
Sempre que a vejo é como se fosse pela primeira vez, por isso, ela nunca murchará na minha lembrança, já que os sentimentos verdadeiros não murcham, nunca, e só eu sei o quanto a amo, como amo tudo o que é das rosas. Acredito, com fé, que as rosas são portais para a dimensão de Deus. São, misteriosamente, inexpugnáveis na sua fragilidade, e eternas na sua fugacidade.
Quando penso que essas criaturas nascem no meu jardim vibro de alegria, pois sinto como se o Universo pousasse ao meu lado, me deixando montá-lo, como se monta no dorso de uma libélula, voando sem fim.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

Santuários corrompidos

Os santuários da Amazônia são as regiões da Hileia onde o colono europeu não ousou pôr suas botas, desembainhar suas espadas, lançar pestes e a Inquisição. O Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque é uma delas. “Estive onde o homem jamais pisara” – comentou o taxidermista do Instituto de Pesquisas Científicas do Amapá (Iepa), João Cunha, depois de participar, juntamente com o taxidermista Manoel Santa-Brígida, do Museu Paraense Emílio Goeldi (MPEG), de expedição levada ao ar pelo Globo Repórter em 11 de fevereiro de 2005.

Pesquisadores e jornalistas estiveram no extremo oeste do parque, próximo à tríplice fronteira entre Brasil, Suriname e a colônia francesa da Guiana, a 450 quilômetros de Macapá, acessível somente por helicóptero. A expedição recebeu apoio do Primeiro Comando Militar da Aeronáutica (Comar) e dos Segundo e Trigésimo Quarto batalhões de Infantaria de Selva (BIS).
Com 38.821,20 quilômetros quadrados, 26,5% do estado do Amapá, o Parque Nacional Montanhas do Tumucumaque, administrado pelo Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), é a maior unidade de conservação do país e a mais extensa área protegida de floresta tropical do planeta. É integrado pelos municípios de Calçoene, Laranjal do Jari, Oiapoque, Pedra Branca e Serra do Navio.
O Amapá é uma das regiões mais belas da Terra. Com 142.814,585 quilômetros quadrados, desmembrados do estado do Pará, debruça-se, no setentrião brasileiro, para o Atlântico, na boca que se abre para o Caribe, limitando-se ao norte com a colônia francesa da Guiana; ao sul com o maior rio do mundo, o Amazonas; a oeste com o Pará; a noroeste com o Suriname; e a leste com o mar. Cortado na altura de Macapá, sua capital, pela Linha Imaginária do Equador, esquina com o Amazonas, longitudinalmente, é atravessado pela sua única rodovia federal, a BR-156, que já enriqueceu muita gente, em todos os governos, desde 1943, numa farra permanente, e que nunca foi concluída.
A França já construiu uma ponte ligando sua colônia a Oiapoque, no Amapá, de modo que, ao ser, algum dia, concluída, a BR-156 ligará Macapá ao Canadá, via América Central. Por enquanto, Oiapoque só aparece na mídia nacional como vitrine de carne infantil, que europeus ávidos por crianças atravessam o rio Oiapoque para degustar na segurança da corrupção tupiniquim.
Estado potencialmente rico, sua costa é a mais piscosa do planeta, infestada de piratas e ignorada pela Marinha de Guerra do Brasil. Com vocação para a indústria de navios, seus governadores jamais incentivaram a instalação de estaleiros e a criação de cursos de engenharia naval e de oceanografia na sua universidade federal. O Amapá conta com a doca mais estratégica da Amazônia, o Porto de Santana, o mais próximo simultaneamente dos mercados americano, europeu e asiático, mas que precisa ser federalizado, pois está sob jurisdição da Prefeitura de Santana, na zona metropolitana de Macapá, operando como porto de uma pequena cidade ribeirinha, quando pode ser o destino de produtos de toda a Amazônia e do Centro-Oeste para exportação.
Em Macapá, na margem esquerda do Amazonas, falta água encanada e a cidade não tem esgoto. Também falta energia elétrica na capital amapaense - imagine-se no restante do Amapá -, apesar de Tucuruí.
Agora, a tragédia: além de Zé Sarney, o potentado do Maranhão, ter anexado o Amapá, que o ungiu senador vitalício, o padrinho de Lula agora divide o estado com a família Capiberibe: o governador, Camilo Capiberibe; o pai do governador, ex-governador João Capiberibe; e a deputada federal Janete Capiberibe, todos do PSB.
A roubalheira no Amapá é bilionária.
A Amazônia precisa de santuários, mas se as máfias que a estão comendo, não mais a ferro e fogo, e sim com a caneta, não foram varridas para o esgoto, ela se tornará apenas o continente da escravidão sexual de crianças.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

As rosas falam

Chove na minha memória
Barcos deslizam na boca do rio Amazonas e despencam no Atlântico
Na latitude da Linha Imaginária
Espero as chuvas com a mesma sofreguidão com que aguardo
O outono, o inverno e a primavera
O verão, como ocorre em todas as estações da vida,
Inunda o continente do meu coração
De rosas tão azuis que sangram
E mangas doces como seios de mulheres de olhos verdes como esmeraldas
E, se é madrugada, a chuva se confunde ao som ininterrupto do mar
E o atrito da Terra no espaço invade minha alma
E se mistura ao perfume das virgens ruivas, misterioso como mulher nua
Como a luz, como o éter, como o triunfo das rosas

Brasília, 11 de outubro de 2011

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Fim de semana

RAY CUNHA

A embarcação mergulhava a proa e dava a sensação de um dorso de cavalo a galope. Durante toda a manhã foi assim. À tarde, o sol amarelava a baía; não havia vento e o calor estava sufocante. E assim passou-se o dia até a noite, quando chegaram à ilha ao largo de Marajó.
Cedo, no dia seguinte, contornaram a ilha, desembarcaram e se internaram no mato em busca de porcos, que tinham sido vistos naquele ponto. Os rapazes avistaram uma clareira, onde erguia-se um taperebazeiro, e ouviram os porcos. Jiparaná se abaixou para ver as pegadas e um porco passou desembestado por eles. Isaías engatilhou a doze, mas o porco sumira no mato. Jiparaná pediu a doze e quando pegou a arma ela disparou para o ar.
- Bando de filhos da puta! Como é, seu sacana, que tu me dás esta porra engatilhada, em, seu filho da puta?
- Lá está ele! – gritou um dos caboclos, apontado para o porco, que estacionara adiante e procurava orientar-se. Entraram no mato atrás dele e conseguiram-no encurralar numa capoeira impenetrável. Jiparaná disparou. O animal deu um grunhido e caiu. Fora atingido na cabeça.
À tarde, a ilha pareceu inflar. Surgiram praias até onde alcançavam os olhos.
- Vamos levantar, cambada de vagabundos – disse Jiparaná, sob o protesto dos rapazes. Jiparaná ergueu Carlos da rede e foi atirá-lo no rio, do extremo do trapiche. – Vou fazer uma operação daqui a pouco – disse, enquanto tomava um gole de café. – Alguém quer ir comigo?
Só João quis ir e Jiparaná largou-se com ele e um caboclo.
- Outro dia peguei uma criança. Estava morta. Quase podre já.
- E agora, o que é?
- Gangrena.
A casa havia surgido ao longe. Na frente havia meia dúzia de crianças. Quando os avistaram as crianças entraram correndo.
O doente gemia numa rede atada na parte central da casa.
Jiparaná olhou a mão gangrenada e fez uma careta, e pediu que fervessem água.
- João, me dá a maleta. – Tirou um bisturi, Quelene e álcool. João guardou para si uma caixa de Quelene, sem que Jiparaná notasse.
Não havia muito o que fazer. O doente teria que ser removido para Macapá na madrugada seguinte. Jiparaná fez suas recomendações e disse que passaria, com a maré, para pegar o doente. De volta à ilha aproveitariam o que sobrava do dia para pescar.
- Vou dar uma cagada enquanto isso... – disse João, apanhando uma Bíblia. Então mostrou um frasco de Quelene para os outros rapazes. Tomaram um caminho que dava para o mato. Sentaram-se e puseram-se a cheirar Quelene. João sacou meia página da Bíblia e preparou um cigarro.
- Só falta agora Abbey Road e a Telma – disse Isaías.
- E vodca também – lembrou João.
- Com laranja – Carlos completou.
- A Telma é uma delícia...
- Ela deve estar banhadinha uma hora dessas, escutando os Beatles.
Jiparaná os chamou. Foram pescar nos poços ao longo da praia. Os peixes não morriam imediatamente, envenenados pelo timbó, e uma grande piramutaba saltou de dentro da rede, caindo no poço, para logo depois flutuar.
A noite caiu. E tudo pareceu imerso dentro da noite. A ilha era a casa. Quem se aproximasse da casa veria a brasa dos cigarros, que se alumiavam, de vez em quando, pousados no piche da noite.

Do livro de contos A grande farra (edição do autor, Brasília, 1992, 153 páginas, esgotado)