quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Jornada Brasília adentro

De manhã, em torno das 8 horas, cruzo o Setor Comercial Sul mergulhado no perfume de mulheres tão lindas que parecem nuas. Algumas andam como modelos no voo pelo tapete vermelho, como Gisele Bündchen. Falar em Gisele, comecei a ler pesos pesados como Ernest Hemingway lá por 1968, aos 14 anos, nas minhas incursões diárias à biblioteca do meu irmão mais velho, Paulo Cunha, o primeiro grande leitor que conheci. A biblioteca dele foi meu primeiro laboratório, depois de iniciado pela sua também volumosa coleção de gibis. Um dia, creio que em 1971, indo a Belém (foi a primeira vez que saí de Macapá; Belém me hipnotizou até hoje), fui, com o pintor genial Olivar Cunha, visitar o Paulo no hotel onde morava; na época, ele era gerente na Brasilit. Entrar no seu quarto e ver as estantes e pilhas de livros que pareciam tomar conta de todo o espaço causou em mim o mesmo maravilhamento que a caverna dos 40 ladrões (não os do Mensalão) deve ter causado em Ali Babá. A terceira etapa do meu aprendizado foi com Isnard Brandão Lima Filho, e também foi tão fantástica como os espelhos de Jorge Luis Borges. Voltando à Gisele, essa loira que fascina também meu amigo Carlos Honorato, evoca-me Giselle Montfort, a espiã nua que abalou Paris, membro da resistência francesa na Segunda Grande Guerra, sob o codinome ZZ7. Era linda e tudo o que me convinha naquela época. Giselle Monftorf foi criada pelo jornalista David Nasser, em 1948, e a novela foi publicada em 56 capítulos no Diário da Noite, e depois em quatro volumes, em 1952. Dos anos 1960 aos 1990, o escritor espanhol Antônio Vera Ramirez, sob o pseudônimo de Lou Carrigan, deu prosseguimento à ideia original de David Nasser criando Brigitte Montfort, filha de Giselle; a Editora Monterrey, do Rio de Janeiro, publicou 500 histórias de Brigitte. Lembro-me que lia um Giselle, ou Brigitte, inteiro, em poucas horas. Foi assim que, aos 14 anos, numa cidade ribeirinha perdida na Amazônia, andei pela Paris ocupada, a mesma que Ernest Hemingway libertou, sobretudo porque a amava. Mas, como ia dizendo, cruzar o Setor Comercial Sul numa quarta-feira de inverno tropical dá a mesma sensação de participarmos, como espectador, de um desfile de moda.

Sempre que posso, almoço no Sabor Brasília, na praça de alimentação do Conjunto Nacional, um shopping no coração da cidade, ao lado da rodoviária do Plano Piloto, por onde passa meio milhão de pessoas por dia. Trata-se de um labirinto prenhe de mulheres nuas, de tão lindas, num passa-passa infinito. A comida no Sabor Brasília é saborosa, e lá é um dos raros locais da cidade onde como peixe, pois sou do Mundo das Águas, a região mais piscosa do planeta. Cheguei a tal requinte na degustação de peixe que o menor pitiú (do tupi, cheiro forte de maresia) me faz desistir de comê-lo. Descrevo no conto Inferno Verde o preparo de um caldo de filhote. Quem o ensinou a mim foi o radialista macapaense, que vive em Belém, desde sempre, José Maria Trindade, querido amigo meu. Ele me convidou para tomar caldo de filhote no Remada, seu restaurante. Filhote é um dos mais saborosos peixes da Hileia. Segundo A Fauna da Amazônia (Cejup, Belém, 1992, 217 páginas), de Roberto M. Rodrigues, filhote é a piraíba pequena. Piraíba é o maior peixe de couro do Brasil, atingindo 3 metros de comprimento por 1,40 de diâmetro e pesando 150 quilos. Trindade comprou filhote fresquinho, limpou-o, lavou-o com escovinha e o pôs algum tempo de molho no limão. Depois é só pôr água para ferver, acrescentar os temperos de praxe e depositar o peixe na panela. O caldo é mais saboroso do que qualquer prato francês. Da mesma forma que tamuatá no tucupi e jambu, com farinha d'água, é capaz de fazer qualquer chefe francês se ajoelhar.
Às 13 horas, a praça de alimentação do Conjunto Nacional, como em qualquer grande shopping numa grande cidade deste continente tropical, regurgita de mulheres, lindas como um grande jato comercial pousando. Uma das coisas que mais gosto de fazer é ver e conversar com mulheres. Perscruto suas almas e percebo nelas uma luz como se Deus ainda continuasse junto a elas, como o pintor junto à tela, aperfeiçoando-a, como o pai carinhoso que vela pela criança. Assim era minha mãe, e assim foram todas as mulheres que me amaram, embora, às vezes, as magoassem imperdoavelmente. Busco, nas mulheres, luz, e elas nunca se recusam a dá-la. Sei, hoje, que as mulheres, que, nos dando à luz, e nos iluminando, nos transformam em poetas, porque, então, compreendemos a rosa.
Há dois lugares estratégicos na praça de alimentação: defronte para as escadas, de onde jorram beldades, e defronte ao Torre de Pisa, restaurante e cafeteria, de onde também podemos descortinar, numa posição discreta, o harém. De lá, costumo tomar um espresso na Kopenhagen, defronte à Saraiva. Degusto um blend curto, confortavelmente sentado numa cadeira de palinha (que é como chamamos em Macapá para móveis de vime, ou cipó), e depois bato perna nas três livrarias do shopping. Creio que foi em 2006 que meu querido amigo, mestre, padrinho, o jornalista Walmir Botelho, um dos leitores mais vorazes que conheço, sugeriu a mim, numa visita que fiz a ele, em Belém, que lesse A Festa do Bode, de Mario Vargas Llosa. O livro esteve fora do mercado até Vargas Llosa ganhar o Nobel, este ano. Dia 24 de dezembro estava eu cumprindo o presente ritual quando me deparei, na Saraiva, com um monte de A Festa do Bode. Só mesmo Vargas Llosa para escrever um romance desses. Ele romanceou a história do general Rafael Leonidas Trujillo Molina, o Bode, que, durante 31 anos, governou a República Dominicana com a crueldade demente de todo e qualquer ditador, praticando as maldades mais impossíveis, aquelas que só vicejam, na sua morte, nos pântanos do poder desesperado, a podridão exalada por hienas como Fidel Castro, Hugo Chávez, e sequazes, para só ficarmos na Ibero-América. Feras como essas jamais deterão o poder absoluto, por uma razão simples: a mentira, a corrupção, não detém qualquer poder. É, como o mundo físico, apenas ilusão.
Vargas Llosa construiu uma catedral gótica seguindo os passos do Bode. Merecia, há tempo, o Nobel. O primeiro livro que sugeri à minha esposa, Josiane, pouco depois que a conheci, cafuza de 19 anos, linda que só ela mesma, principalmente quando ficou grávida da Iasmim, foi Tia Júlia e o Escrevinhador, de Llosa. Ele é do tamanho de Gabriel García Márquez e de Ernest Hemingway, e de William Faulkner, é claro.
Às vezes, tenho a sorte de conhecer novos amigos. Foi assim que estive na mais recente exposição de Ralfe Braga, artista plástico macapaense, cosmopolita e que também vive, muito antes que eu, em Brasília. Ontem, encontramo-nos num bar na 107 Norte, tão cheio de mulheres monumentais que nem dava para acreditar. É bom permanecer num lugar cheio de mulheres lindas; é como estar num jardim vermelho de rosas. Ralfe Braga me apresentou ao poeta Marcelo Benini, num desses papos impagáveis, e inesgotáveis, como os que mantinha com Walmir Botelho.
O Natal, este ano, transcorreu, como sempre, em paz. Mas neste ano ele foi como um dia qualquer; eu o senti apenas na alma, como um nascer de novo, um renovar-se, a alegria de ouvir o riso das crianças e sentir o perfume do jardim que cultivamos nas nossas mais luminosas lembranças, as únicas que devemos guardar no relicário da memória. Meu Pai é poderoso e sempre concretiza meus pedidos, porque são verdadeiros. A Ele pedi que arrume 2012, Pessoalmente, para todos os meus familiares e meus amigos e amigas, com os tesouros mais preciosos do mundo, que se encontram numa urna de luz, no meu coração.


Brasília, 29 de dezembro de 2011

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