sábado, 10 de março de 2012

CONTO/Fim de semana

A embarcação mergulhava a proa e dava a sensação do dorso de um cavalo a galope. Durante toda a manhã foi assim. À tarde, o sol amarelava a baía; não havia vento e o calor estava sufocante. E assim passou-se o dia até a noite, quanto chegaram à ilha, ao largo do Marajó.

Cedo, no dia seguinte, contornaram a ilha, desembarcaram e se internaram no mato em busca de porcos, que tinham sido vistos naquele ponto. Os rapazes avistaram uma clareira, onde erguia-se um taperebazeiro, e ouviram os porcos. Jiparaná se abaixou para ver as pegadas e um porco passou desembestado por eles. Isaías engatilhou a doze, mas o porco sumiu no mato. Jiparaná pediu a doze e quando pegou a arma ela disparou para o ar.

- Bando de filhos-da-puta! Como é, seu sacana, que tu me dás esta porra engatilhada, em, seu filho-da-puta?

- Lá está ele! – gritou um dos caboclos, apontando para o porco, que estacionara adiante e procurava se orientar. Entraram no mato atrás dele e conseguiram-no encurralar numa capoeira impenetrável. Joparaná disparou. O animal emitiu um grunhido e caiu. Fora atingido na cabeça.

À tarde, a ilha pareceu inflar. Surgiram praias até onde alcançavam os olhos.

- Vamos levantar, cambada de vagabundos – disse Jiparaná, sob protesto dos rapazes. Jiparaná ergueu Carlos da rede e foi atirá-lo no rio, do extremo do trapiche. – Vou fazer uma operação daqui a pouco – disse, enquanto tomava um gole de café. – Alguém quer ir comigo?

Só João quis ir e Jiparaná largou-se com ele e um caboclo.

- Outro dia peguei uma criança. Estava morta. Quase podre já.

- E agora, o que é?

- Gangrena.

A casa havia surgido ao longe. Na frente, meia dúzia de crianças aguardava a ubá. Quando encostaram, as crianças entraram correndo.

O doente gemia numa rede atada na parte central da casa. Jiparaná olhou a mão gangrenada, fez uma careta e pediu que fervessem água.

- João, me dá a maleta. – Tirou um bisturi, quelene e álcool. João guardou para si uma caixa de quelene, sem que Jiparaná notasse.

Não havia muito o que fazer. O doente teria que ser removido para Macapá na madrugada seguinte. Jiparaná fez suas recomendações e disse que passaria, com a maré, para pegar o doente. De volta à ilha, aproveitaram o que sobrava do dia para pescar.

- Vou dar uma cagada, enquanto isso... – disse João, apanhando uma Bíblia. Então mostrou um frasco de quelene para os outros rapazes. Tomaram um caminho que dava para o mato. Sentaram-se e puseram-se a cheirar quelene. João sacou meia página da Bíblia e preparou um cigarro.

- Só falta agora Abbey Road e a Telma – disse Isaías.

- E vodca também – lembrou João.

- Com laranja – Carlos completou.

- A Telma é uma delícia...

- Ela deve estar banhadinha uma hora destas, escutando os Beatles.

Jiparaná os chamou. Foram pescar nos poços ao longo da praia. Os peixes são morriam imediatamente, envenenados pelo timbó, e uma grande piramutaba saltou de dentro da rede, caindo no poço, para logo depois flutuar.

A noite caiu. E tudo pareceu imerso dentro da noite. A ilha era a casa. Quem se aproximasse da casa veria a brasa dos cigarros, que se alumiavam, de vez em quando, pousadas no piche da noite.


Fim de semana, conto do livro A grande farra, edição do autor (Ray Cunha), Brasília, 1992, 153 páginas, edição esgotada

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