sábado, 31 de agosto de 2013

Encontro com José Gaspar, Nestor Nascimento, os olhos de esmeraldas azuis da Mara, Marina Monarcha e uma prece de Carmen Monarcha

BRASÍLIA, 31 DE AGOSTO DE 2013 – Um dos momentos mais ricos da minha formação foi a convivência com o crítico de cinema José Pereira Gaspar, entre 1975 e 1977, em Manaus. Eu tinha 21 anos e creio que ele tivesse quase uma década mais do que eu, mas estava muito além de mim. Chamava-o de Velho e não passava um dia sem vê-lo, se isso fosse possível. Acredito que o conheci no Curso Dinâmico, dirigido por Nestor José Soeiro do Nascimento, que faria história como líder negro.

Na época, eu trabalhava como repórter em A Notícia, jornal diário já extinto. Às vezes, eu terminava cedo a pauta e antes de retornar ao jornal, onde almoçava, fiado, na cantina, passava no Conservatório da Universidade Federal do Amazonas, no centro de Manaus, onde o Velho batia ponto. Conversávamos um pouco. À noite, costumávamos nos encontrar no Dinâmico, ou num bar, onde degustávamos algumas garrafas da maravilhosa Antarctica manauara. Conversávamos sobre tudo, especialmente mulheres.

Graduado em letras em Lisboa, sua cidade natal, o Velho dominava pelo menos francês e inglês, era bastante viajado e curtíamos algumas coisas em comum, além das mulheres: o mundo criado por Ernest Hemingway; o dançarino Mohammad Ali; Mateus Rosé; cinema, no precipício do qual ele me empurrou numa queda que dura até hoje e acredito que durará para sempre; conversávamos sobre tudo.

Contudo, havia dois assuntos caros para mim. Uma das razões que me fizeram oferecer feroz amizade ao Velho foi a degustação e sugestões preciosas que me presenteou ao ler contos meus. Tratávamos desse assunto com a maior seriedade, e, pela primeira vez, senti que tinha o dom de parir, criar personagens de carne e osso, que sofrem e gozam, que vivem, enfim. Devo o despertar dessa percepção ao Velho.

Outro assunto caro era Mara, afilhada do Velho e mãe de alguns dos filhos do Nestor. Descendente de espanhóis, seus olhos verdes me fascinavam, e continham, em certas manhãs, o azul do mar, e, às vezes, eram felinos. Ocorre-me, agora, um episódio, certa noite. O Nestor e a Mara encontraram-se num bar na Avenida Getúlio Vargas, no centro de Manaus. Ele, negro, e ela, lindíssima, ruiva, os olhos como duas esmeraldas azuis, a pele de alabastro com sardas aqui e ali, no colo, a voz melodiosa, as pernas bem torneadas, belíssima em vestido rosa, os cabelos de mel deslizando como música aos movimentos da cabeça. Quatro tipos sentados noutra mesa não tiravam os olhos deles. Como pode um negro e uma ninfeta linda de enlouquecer se beijando? Levantaram-se e baixaram a porrada no Nestor. Mara, lindíssima e valente, meteu as unhas nas bestas, até que a quadrilha debandou e ela, então, pegou a cabeça do meu dileto amigo Nestor e o acalantou no seu colo prenhe de redenção.

Meu amigo Nestor já está nos campos de Deus, onde não há tempo nem espaço, nem limitação de espécie alguma, muito menos de cor. Ele e Mara vivem no meu coração, para sempre.

Morei, durante algum tempo, numa casa do artista plástico Álvaro Pascoa, repleta de telas de Hahnemann Bacelar, que conviveu com o Álvaro Pascoa. O Velho conseguiu aquela casa, no bairro de São Francisco, para eu morar. Nela, a que eu chamava de Finca Vigia, em homenagem a Hemingway, atravessei intensa fase da minha educação sexual. Foi quando aprendi a cavalgar um feixe de luz tão azul que vertia sangue, se o fustigava; foi lá que ouvi, pela primeira vez, o som da alma feminina, gemidos, música sublime, que nem Mozart jamais sonhou compor, fluindo no abismo dos vãos entre as galáxias do meu espírito, céu de clorofila, cheiro de madrugada, um leve sabor de vinho e qualquer coisa espanhola.

Naquela época, o Velho começou um romance com a cantora lírica paraense Marina Monarcha, com quem se casou, e eu me mudara para Belém, onde fui morar na casa do gênio macapaense Olivar Cunha e trabalhar no jornal O Liberal, encaminhado pelo crítico de cinema Pedro Veriano, amigo do Velho. Por volta de 1981, casara-me pela primeira vez, com Maria Celia Ferreira Chagas, quando o Velho me visitou. Ele é desses tipos que curtem a vida até o toco, e naquela manhã soltava estrelinhas dos olhos.

Revi o Velho algumas vezes, em idas fugazes a Manaus, e sempre foi como quando voltamos à cidade natal e bebemos a essência das nossas raízes; o Velho contém o espírito da curtição, um renovar-se, como ouvir Carmen Monarcha.

A última notícia que tive do Velho foi que a revista Cinéfilo – que ele editou no fim dos anos de 1960, e interditada pela Ditadura dos Generais (1964-1985) – ganhou edição histórica, reunindo seus quatro números, e lançada no dia 13 de junho passado. Bacana, Velho! Quando pudermos, vamos tomar uma! Quem sabe eu saia do meu jejum alcoólico e beba uma garrafa da maravilhosa Antarctica manauara, ou um trago de Mateus Rosé, ou mesmo água tônica. Não importa, pois sempre que nos encontramos, Velho, abre-se o portão mágico do abismo azul, e surgem os olhos da Mara, grandes como o mundo, e ouço uma prece de Carmen Monarcha.

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