sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Senador é degolado numa Brasília de duas faces: a corrupta e a luminosa. Neste romance policial de Ray Cunha criaturas fictícias convivem com personagens de carne e osso, vivas ou mortas

Capa da edição da Amazon.com

Capa da edição do Clube de Autores
O país afunda em corrupção e o erário escorre pelo ralo em obras bilionárias e superfaturadas, e que nunca terminam. Nada a ver com o Brasil atual. É ficção, mesmo. Ao investigar o assassinato de um senador da República, degolado com uma katana no suntuoso Tropical Hotel, que ocupa uma quadra inteira do Setor Hoteleiro Sul e onde voejam prostitutas de luxo, o detetive particular Hiena faz a grande descoberta de sua vida.

Trata-se do último romance de Ray Cunha, escritor nascido em Macapá, na Amazônia Caribenha, e que vive em Brasília desde 1987. Devido ao seu trabalho como jornalista, conhece os subterrâneos, bem como os bastidores da cidade-estado, além de ser também observador privilegiado dos seus palácios e shoppings, catedrais pós-modernas da Ilha da Fantasia.

Neste romance desfila um magote de personalidades reais, como, por exemplo, o maestro Silvio Barbato, ressuscitado para reger a Orquestra do Teatro Nacional Claudio Santoro em dois clássicos: o Concerto Para Piano e Orquestra, em Ré Menor, de Mozart, e o Bolero de Ravel; as cantoras paraenses Carmen Monarcha, que se apresenta com André Rieu, e Joelma, da Banda Calypso; três artistas plásticos: José Pires de Moraes Rego, Olivar Cunha e André Cerino; e até a famosa personagem de ficção Brigitte Montfort.

Por enquanto, HIENA está à venda somente no Clube de Autores e na Amazon.com. Faça o seu pedido!

Ray Cunha, fotografado pelo artista plástico André Cerino, no ateliê do pintor

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

Mulher se pintando

Devido ao ângulo em que me encontrava podia vê-la impunemente, como um velho voyeur, que toma todos os cuidados ao praticar seu poético desvio, se o interesse é apenas ver mulheres entregues a si mesmas. A tarde expirava, e a noite ia tomando conta da cidade, lenta, mas firme. Eu tomara o metrô na Praça do Relógio, em Taguatinga, e desceria na 112 Sul, no Plano Piloto. O vagão não tinha quase ninguém e de onde eu me posicionara podia vê-la de perfil. Seus ombros eram graciosos e tinha longo pescoço, que lembrava um Modigliane. Seus cabelos, negros, eram curtos, deixando-me ver o brinco, balançando como estrela cadente. Seu nariz era pequeno e as pestanas longas. Pressionada pelo meu olhar vampiresco, ela se virou nervosa em minha direção e vi que seus lábios eram quase finos. Foi então que começou o espetáculo. 

Ela abriu a bolsa e sacou um estojo de onde tirou várias ferramentas, entre as quais um espelhinho. Mirou-se, passou blush no rosto, espalhou-o, e quando abriu o batom ajeitei-me no banco. Ver uma mulher passando batom nos lábios me arrepia. Ela deslizou o bastonete vermelho em toda a extensão de ambos os lábios e depois esfregou um no outro. Eu respirei forte. Então ela guardou o estojo e se acomodou, segura de si e relaxada.

Desci na 112 Sul e quando passei por ela me voltei rapidamente, com o olhar clínico armado. Ela não era bonita para os padrões televisivos, mas rescendia à beleza da sensualidade que só existe no mistério. Para onde iria? Para quem pintara aqueles lábios, agora salientes como os de Angelina Jolie? Em quem deixaria aquela tinta vermelha que a fazia belíssima?

Quando emergi da estação do metrô já era possível sentir a força de gravidade da noite. Ia pensando na mulher do metrô e na beleza feminina, e então me dei conta de algo que me intrigava há bastante tempo. Por que certas mulheres, com traços perfeitos, são tão sem graça? Percebi que a beleza feminina é como as rosas no mistério da sua solidão, e que só podemos senti-la completamente se captamos as mulheres no momento de entrega a elas mesmas.

Em O grande Gatsby, de Scott Fitzgerald, há uma sequência em que numa sala há um homem e duas mulheres. As mulheres parecem não ver o homem. Estão entregues a si mesmas, e são tão lindas que parecem flutuar na tarde. O homem aspira a cena, como um vampiro de luz.

Quando eu tinha 14, 15 anos, e recebi os primeiros beijos, de ninfetas tão lindas como rosas, havia um terremoto no coração, só comparado ao que sinto quando vejo uma mulher nua sentada ao toucador, a escovar os cabelos e a passar no pescoço e no colo fragrâncias de cio, os cabelos esvoaçando no mesmo abandono delas mesmas. Então, mais do que nunca, são como as rosas, que se bastam a si mesmas.

sexta-feira, 7 de agosto de 2015

Eternidade

Ray Cunha (foto de Iasmim Cunha - 7 de agosto de 2014)


Não consigo mais, durante toda uma noite, aspirar teu perfume
E beber a calidez que emana dos teus seios, e do teu púbis
Não consigo mais passar a noite inteira te amando
Mas isso tudo pulsa no meu coração como a eternidade

Meus cabelos vão rareando, embranquecidos
E os músculos, sem tônus, são cicatrizes
Quedo-me, silencioso, mas intenso como espilantol
Inexpugnável como rosas de agosto

Sinto meu corpo se desvanecer, e se condensar
A 300 mil quilômetros por segundo
Como se do azul eu fosse asas

Exploro as tuas dimensões
E ouço o som da Terra no espaço, durante o mergulho
Deus, risos de crianças, a eternidade, o agora


Meu pai, João Raimundo Cunha, e Ernest Hemingway, talvez o escritor que mais amplamente li, tinham 61 anos quando partiram para o mundo espiritual. Sei como as coisas são nessa idade. Nós três nos encontramos no Quartinho da Casa Amarela, portal onde mortos e vivos confabulam numa festa sem fim. Papa gosta do balcão do bar; papai prefere o quintal. Quanto a mim, curto intensamente tudo o que tenho.

Aos 21 anos, perdi-me, durante décadas, num emaranhado de labirintos, até descobrir que estivera andando em círculos no elemento feminino. Hoje, caminho melhor nesse mergulho, guiado pela experiência da longa caminhada. Meus sentidos, inclusive o sexto, estão encharcados de espilantol. Meu corpo denso começa a desaparecer, e sinto-me flutuando no éter.

Tantas coisas proporcionam-me prazer intenso: ver as pessoas que amo; ouvir o som da Terra no espaço, a madrugada, riso de crianças, Mozart, gemidos da mulher amada, ler, dormir, meditar, andar à toa, especialmente em grandes livrarias, beber tacacá, montar a luz, sentir cheiro de mulher nua. O tempo vai deixando de existir, dilui-se, o passado são cinzas atiradas ao mar, e não há amanhã; só há o agora e o agora eternizando-se.

Erguer universos com palavras, tem sido isso que me sustenta, e que me faz enxergar a nudez das rosas e o mistério que as mulheres exalam, nunca desvendado, porque eterno. Sou dono de tesouros imensos, de valor inestimável, pois desenvolvi a capacidade de sentir o voo da luz, o cheiro mar e o choro dos jasmineiros, nas tórridas noites do mundo, em agosto. Tenho telas de Olivar Cunha e sinto a presença das rosas que Isnard Brandão Lima Filho ofertou para a madrugada. E sou capaz, como um mágico, de aliviar dores com agulhas.

Não desejo mais descobrir ouro no morro do Salamangone, Serra Lombarda, município de Calçoene, no estado do Amapá, nem escalar o Pico da Neblina, nem pilotar um Boeing 777, nem praticar kendo, nem saltar de paraquedas, nem de mergulhar no coração das trevas da Amazônia. Basta-me a companhia de Hemingway, ou de Gabriel García Márquez, ou de Vargas Llosa, ou de Graciliano Ramos, ou de Machado de Assis, para viajar por mundos insuspeitos. Ou tomar Cerpinha enevoada no quarto de um hotel, no sétimo andar, ou na hora de ser enforcado ser salvo e dormir com a princesa.

Tudo o que quero é comparecer ao encontro marcado com a mulher amada, criar universos, sentir a noite, como um navio iluminado, embriagar-me com o perfume das virgens ruivas, ouvir o som da madrugada, sentir a presença do mar, do trópico, do sol das oito no rosto, diluir-me no acme e reaparecer no azul.

domingo, 5 de julho de 2015

Papo com Walmir Botelho D’Oliveira

Jornalista Walmir Botelho D'Oliveira e filhos
BRASÍLIA, 5 DE JULHO DE 2015 – Recebemos na confraria um jornalista brilhante: Walmir Botelho D’Oliveira, irmão querido, e mestre. Gabriel García Márquez está batendo altos papos com ele. Walmir foi para o mundo espiritual, ontem, aos 67 anos. Ele foi meu grande mestre no jornalismo, orientou-me na literatura, leitor voraz que era, e deu-me água em momentos de desesperança. Protegeu-me, estendeu-me as mãos nos meus voos cegos na caminhada. Conheci-o em Macapá, minha cidade natal; eu tinha 17 anos e ele já era um gênio, e se casou com uma ninfeta linda, minha amiga para sempre, Deury Farias. Depois, em Belém, trabalhei junto com ele e Octávio Ribeiro, o Pena Branca, em O Estado do Pará, e depois, em Brasília, no Correio do Brasil e no BSB Brasil, do Oliveira Bastos; e de volta a Belém, em O Liberal, em 1996/1997. Seu texto era impecável, e será sempre um farol nas minhas incursões jornalísticas. Cansamos de beber a noite toda, até o sol surgir, e de bater papo durante horas. Falávamos sobre literatura, mulheres, bebida, jornalismo, sobre tudo, e não cansávamos de voltar a conversar sobre todas essas coisas. Walmir amava a intensidade, a luz, o azul, não tinha apego a nada, nem ambicionava nada. Belém perdeu um pouco da sua graça sem Walmir. Em compensação, o Quartinho da Casa Amarela, que é na verdade o portal da confraria, está em ebulição, numa festa que não acaba nunca.

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Minha namorada





Para Josiane Souza Moreira Cunha

O primeiro beijo que me deste explodiu
Como relâmpago na minha alma
Feriu-me, doce como brisa,
Pétalas pousando no púbis de um anjo

Desde então, flor da minha vida,
Voo na tua dimensão
Grávido de ti, como um abismo,
Mulher amada!

Segue-me, pois te mostrei quase nada
E tenho a chave dos sonhos
Que conduzem à eternidade

À fogueira do nosso amor, minha namorada,
Ao voo vertiginoso
Da luz movida a acme

Fim da censura a biografias não autorizadas. Casos de Roberto Carlos e Guimarães Rosa

Roberto Carlos e este jornalista, em 1976, em Manaus: o gênio e a celebridade do
compositor e cantor já haviam chegado ao topo, de onde Roberto nunca mais sairia

BRASÍLIA, 11 DE JUNHO DE 2015 – O Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou, ontem, por unanimidade, o fim da censura a biografias não autorizadas, apagando uma mancha que enodou a cultura brasileira desde sempre. Nenhum dos 9 ministros presentes concordou com o compositor e cantor Roberto Carlos, que queria a continuidade da mordaça. A ação direta de inconstitucionalidade (ADI) foi impetrada pela Associação Nacional dos Editores de Livros (Anel) contra liminares de instâncias inferiores proibindo o lançamento de biografias não autorizadas. “Ah, então o biografado está desassistido? Não! O autor do livro pode ser processado, segundo o Código Penal, ora essa! O que se sente atingido também pode solicitar direito de resposta” – observa o jornalista Reinaldo Azevedo.

Em 2013, medalhões da MPB, como o ex-ministro da Cultura, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Chico Buarque e Roberto Carlos, reunidos no grupo Procure Saber, defenderam que o direito à intimidade justificaria a necessidade de aval preliminar para a publicação de biografias. Roberto Carlos é um caso exemplar. Em 2006, o escritor Paulo Cesar de Araújo lançou Roberto Carlos em Detalhes; no ano seguinte, Roberto entrou na Justiça, que lhe deu ganho de causa e determinou que 11 mil exemplares fossem recolhidos das livrarias. Mas por que Roberto Carlos não quer sua biografia publicada? Roberto Carlos em Detalhes é um trabalho de fôlego sobre a história recente da música popular brasileira, tendo como eixo o genial cantor popular. Não há nenhum desabono ao artista. Ocorre que Roberto Carlos incorporou a lenda, e nesse aspecto o livro o desmitifica. Sua biografia mostra o ser humano, lutando como um peso pesado pela ribalta, o rapaz Roberto Carlos abrindo picada até a explosão do gênio e se tornar a celebridade que é hoje.

Em 1976, em Manaus, tive a oportunidade de passar cerca de meia hora na companhia de Roberto Carlos. Na época, assinava uma coluna semanal, No Mundo da Arte, no extinto jornal A Notícia, e a produção do jornal conseguiu entrevista exclusiva com Roberto, que fora apresentar-se na cidade e se hospedara no Hotel Amazonas. O chefe de reportagem instruiu-me a perguntar a Roberto se ele usava mesmo meia de mulher como touca, antes dos shows. Pergunta bizarra, mas que satisfaria o suposto perfil dos leitores do jornal, daquele tipo que espremido escorre sangue. Tudo bem! O problema era que o gravador estava falhando, e isso foi meu terror.

No hotel, nos conduziram, o fotógrafo e eu, ao corredor do apartamento onde Roberto estava hospedado, onde fomos recebidos por dois seguranças. Após alguns minutos de espera, Roberto saiu do apartamento e me deu a entrevista no corredor. Revendo o passado, com a lente do distanciamento e da experiência, percebo tudo com mais clareza. Roberto Carlos é carismático. Deixou-me à vontade e me senti como se fosse velho amigo dele. Perguntei-lhe sobre o negócio da meia, assunto que fora objeto de revista de fofoca. Ele me respondeu numa boa. Contudo não lembro mais do teor da entrevista, e depois, fiz tudo no automático, pois me sentia aterrorizado com o gravador, de olho nele, vigiando o rolo de fita girando. Era um velho gravador de tamanho médio. Assim, não prestei atenção à fala de Roberto. Mais tarde, na redação, degravando a entrevista, vi o quanto ela foi burocrática. Mas tudo bem! Restou-me uma fotografia com o Rei.

Naquela época, tive contato com muitas celebridades e pessoas que se tornaram, depois, celebridades, como, por exemplo, Jorge Amado, Grande Otelo, Nara Leão, Marika Gidali, Fafá de Belém antes da explosão, Márcio Souza antes de Galvez Imperador de Acre. Em Roberto Carlos senti, intensa, a genialidade se manifestando; é uma sensação de que tudo gira em torno do gênio, a orquestra girando em torno de Frank Sinatra, em torno de Roberto Carlos. Roberto já estava no auge, e se mantém até hoje no auge. Talvez, depois de tantas décadas na crista da onda, não consiga mais aceitar o que ele foi antes do sucesso: um rapaz, como tantos outros, que ralou, passou por humilhações, e que superou todas elas, mas era movido pela genialidade, e nada pode contra a genialidade.

Celebridades são públicas e, muitas vezes, peças importantes para os historiadores resgatarem certa época, daí porque censurar previamente uma biografia é tentar, inutilmente, lembremo-nos disso, amordaçar a história. Filosoficamente falando, biografias contêm tanta ficção e delírios quanto Dom Quixote de La Mancha, de Miguel de Cervantes. Assim, no caso de Roberto Carlos em Detalhes, o bom do livro são as histórias paralelas a de Roberto Carlos, esta, geralmente comum, de um rapaz lutando pelo sol, até chegar ao topo e, aí sim, surgirem alguns episódios interessantes. Não li o livro, mas li relatos de quem o leu.

De ordinário, poucas existências dão um romance movimentado. Ernest Hemingway foi um desses. Rubem Fonseca, nosso maior escritor vivo, por exemplo, o que teria de realmente interessante para se dizer dele? Paulo Coelho rendeu uma biografia movimentada, escrita por Fernando Morais. Márcio Souza renderá uma biografia interessante? Roberto Carlos rendeu, e ela será atualizada e irá para as livrarias. Se Roberto achar ruim, entrará na Justiça, mas dessa vez dificilmente conseguirá tirar os livros da prateleira.

CASO GUIMARÃES ROSA – Agora, temos um marco legal sobre o limite entre o direito à privacidade e o da informação sobre pessoas de notória projeção pública e celebridades. Até então, no Brasil, havia uma enxurrada de ações judiciais contra editoras e autores de biografias por parentes de biografados, pedindo dinheiro por dano moral e a retirada do livro de circulação. Em 2008, o jornalista Ruy Castro, ao lançar a biografia de Garrincha, foi processado duas vezes: pelas filhas e por uma ex-companheira do astro do futebol. Ruy ganhou um dos processos, mas foi condenado no outro pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), que estipulou indenização de 5% sobre o total de vendas do livro, com juros de 6% ao ano. Em 2009, depois que a imprensa divulgou que Ruy Castro estava escrevendo a biografia de Raul Seixas, o autor foi advertido por uma das cinco ex-mulheres do cantor baiano de que entraria na Justiça caso o livro fosse publicado.

Em 2007, uma pequena editora de Brasília, LGE, hoje Libri Editorial, publicou a biografia Sinfonia Minas Gerais: A Vida e a Literatura de João Guimarães Rosa, de 388 páginas, escrita pelo romancista e ensaísta goiano Alaor Barbosa. Vilma Guimarães, filha do gênio mineiro, e a Nova Fronteira, processaram a LGE, alegando que Sinfonia Minas Gerais é plágio de Relembramentos: João Guimarães, Meu Pai (Editora Nova Fronteira, 1983), de Vilma, que ela chama de biografia, mas que se trata de livro epistolar. Na ação, Vilma alegou que Sinfonia Minas Gerais “causa graves danos morais à imagem” de Guimarães Rosa (1908-1967) e “viola direitos autorais” dela e de “terceiros”, e acusa Alaor Barbosa de dizer que Guimarães Rosa era místico.

A ação era uma peça absurda e causou sérios danos à LGE. A Justiça mandou a editora retirar o livro das prateleiras em 24 horas. Recolher livros num país continental como o Brasil e nos tempos de hoje, com vendedores eletrônicos em cada esquina da internet, é outro absurdo. Além disso, o custo editorial é elevado e a retirada de um livro do mercado é brutal para uma editora pequena. Em agosto de 2013, a Justiça concluiu que não houve plágio e voltou atrás, mandando Vilma Guimarães e a Editora Nova Fronteira pagarem as custas da ação contra Alaor Barbosa e a LGE.

Diz o despacho da Justiça: “Não se verifica em Sinfonia Minas Gerais a utilização de mais de 10% da obra de Vilma Guimarães Rosa, Relembramentos. O percentual não chega a 9,5%”; “A obra de Alaor Barbosa, Sinfonia Minas Gerais, se sustenta e é útil ao conhecimento da vida do biografado e também como obra literária, mesmo sem as referências à obra de Vilma Guimarães Rosa, Relembramentos, ou seja, ainda que os trechos concernentes ao livro da autora do processo sejam suprimidos, o livro Sinfonia Minas Gerais tem função e interesse histórico e literário”. E afirma que ao citar Vilma e outros autores Alaor Barbosa os identifica com precisão, não omitindo, hora alguma, suas fontes.

Alaor Barbosa afirmou, na sua defesa, que as autoras da ação pretendiam garantir reserva de mercado para faturar em cima de Guimarães Rosa: "A Editora Nova Fronteira acaba de relançar obra de autoria de Vilma Guimarães Rosa, intitulada Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai, livro publicado em 1983, com pouco sucesso comercial e que não se configura tecnicamente uma biografia, mas sim um livro que procura mostrar, em sua visão de filha de Guimarães Rosa, quem seria o seu pai, principalmente por meio da transcrição de cartas escritas e recebidas por Rosa ao longo de sua vida. Evidente que as autoras da ação se aproveitam do ano de centenário de morte de Guimarães Rosa para, absurdamente, tentarem obter vantagens econômicas; sendo certo que buscam o Poder Judiciário visando a uma espécie de exclusividade em relação à história de um dos maiores escritores brasileiros; história esta cuja importância em muito transcende os laços de parentesco. Trata-se, como restará demonstrado, de uma evidente pretensão de apropriação da figura, da vida e da obra de João Guimarães Rosa por parte de uma sociedade editorial de grande porte, que, repita-se, tenta se utilizar do Poder Judiciário para potencializar o seu já notável poderio econômico; buscando, absurdamente, vedar a concorrência”.

E quem é esse Guimarães Rosa que não pode ter sua vida revelada por uma biografia? “Sou um sertanejo” – disse, durante uma das raríssimas entrevistas que concedeu, a Günter W. Lorenz, em Gênova, em janeiro de 1965. Entre os monstros brasileiros da ficção, Guimarães Rosa, que se comunicava em mais de uma dezena de idiomas, foi um dos que mais fundo mergulhou na língua brasileira. “Nosso português-brasileiro é uma língua mais rica, inclusive metafisicamente, que o português falado na Europa. E, além de tudo, tem a vantagem de que seu desenvolvimento ainda não se deteve; ainda não está saturada. Ainda é uma língua jenseits Von Gut und Bose (Além do Bem e do Mal, título de um livro de Nietzsche), e, apesar disso, já é incalculável o enriquecimento do português no Brasil, por razões etnológicas e antropológicas” – disse Rosa a Lorenz. “Pelo processo de mistura com elementos indígenas e negroides com os quais se fundiu no Brasil...” – disse Lorenz, a que Rosa replicou: “Exato, este foi um enriquecimento imenso e já pode ser notado no exterior pela quantidade de diferentes dicionários europeus e americanos do mesmo idioma. Naturalmente, tudo isso está à nossa disposição, mas não à disposição dos portugueses. Eu, como brasileiro, tenho uma escala de expressões mais vasta que os portugueses, obrigados a pensar utilizando uma língua já saturada”.

Guimarães Rosa, como todo grande artista, precisa ser biografado, analisado, esmiuçado, independentemente dos familiares dele, pois foi um artífice único na recriação do mundo singular do sertanejo mineiro, daí porque é um dos escritores brasileiros mais estudados e traduzidos na Europa, na tentativa, malograda, de os europeus compreenderem o trópico. Assim, compreender o mundo de Rosa é enxergar uma faceta da pedra angular da cultura brasileira. É isso que Alaor Barbosa faz, lança luzes sobre a vida e a obra do gênio mineiro. “Creio que minha biografia não é muito rica em acontecimentos. Uma vida complemente normal” – disse o monstro das Alterosas a Lorenz, em 1965, dois anos antes de morrer. É fato. Guimarães Rosa foi sertanejo e funcionário público, diplomata; um sujeito tão discreto que parecia se esconder, e isso Alaor Barbosa resgata.

A biografia escrita por Alaor Barbosa é adiposa. Vilma se queixou na Justiça de que o escritor goiano fez inúmeras citações do seu livro epistolar Relembramentos. Alaor pode extirpar todas essas citações que, ainda assim, a biografia do monstro sagrado continuará inchada como os pés de um pinguço. Alaor reconstruiu a geografia de Rosa, psicanalisou-o e resgatou o dia-a-dia do criador de Grande Sertão: Veredas.

Na época desse imbróglio, a filha de Alaor, Noemia Barbosa Boianovsky, bacharela em Relações Internacionais, jornalista, advogada, consultora da Câmara Legislativa do Distrito Federal, endereçou uma carta para Vilma Rosa:

“Vilma,

“Nasci filha de escritor. Doei para o meu pai, desde o meu nascimento, longas horas da minha infância e da minha adolescência. Meus irmãos doaram outras tantas horas. Minha mãe dividiu o marido, durante décadas, com sua amante, a literatura. Mas meu ciúme de criança foi se atenuando, ao longo dos anos, e mais ainda com o chegar da maturidade. Passei a admirá-lo, respeitá-lo, reverenciá-lo. Principalmente, passei a compreendê-lo. Literatura, para o meu pai, o escritor Alaor Barbosa, é e sempre foi devoção. Triste do filho ou da filha que não respeita e nem compreende as devoções paternas.

“Assim como você, também sou herdeira de uma obra literária. Grande, extensa, profunda, séria. Fruto de muito trabalho, pesquisa e esforço, feita com paixão e talento. Obra reconhecida e tantas vezes premiada. Falo de quase meio século de produção literária, tempo bem maior do que eu mesma tenho de vida. Meu pai, Vilma, já era escritor antes de eu nascer.

“Tenho a sorte de ter meu pai comigo, avô carinhoso das minhas filhas, em almoços de domingo. Vivo, feliz e produtivo. Mas já estou de posse da herança que ele me legou. Foi uma partilha sem desavenças, entre a família e os amigos. Não a herança material, mensurável, quantitativa, que se deposita em conta bancária. Desta, basta-nos o óbolo de Caronte. O que recebi de meu pai foi um norte, um rumo, um equilíbrio, um eterno buscar da verdade. O amor e o respeito por tudo de bom que o ser humano já produziu.

“Você, Vilma, também recebeu uma herança. Magnífica herança, portentosa, imensurável. A herança de um gigante. A herança de um gênio, primus inter pares. Temos, portanto, responsabilidades. Eu e você. A minha, talvez mais leve, é a de impedir que a herança de meu pai seja aviltada, desqualificada, vilipendiada. Isso, tenha certeza, não acontecerá. As inverdades, calúnias e difamações são muito fugazes e, uma vez reveladas, deixam despida aquela que as inventou. Aliás, é assim que eu vejo você: despida, nua, pelada. Porque mais marcado será sempre o caluniador do que o caluniado. Já a sua responsabilidade, Vilma, é a de não abastardar, não apequenar, não diminuir a sua herança, o seu legado. A obra do seu pai é universal. Não a amesquinhe, não reduza a herança à estatura da herdeira.

“Num país como o nosso, Vilma, tão carente de cultura, tão necessitado de modelos, tão merecedor de exemplos, resta-me recordar as palavras de outro ídolo de meu pai, Monteiro Lobato, cuja biografia para crianças também saiu da máquina de escrever Olivetti que havia na biblioteca lá de casa. Lobato disse que um país se faz com homens e livros. Você, portanto, quando tenta impedir a existência de um livro, de uma obra literária, espanca a inteligência nacional, ofende a tantos que tombaram em nome da liberdade e do direito de expressão e do livre pensamento! Talvez, Vilma, seu tempo tenha passado. Imagino você mais feliz vivendo uma outra época – mais escura do que a de agora. Talvez sob o Estado Novo ou abrigada pelo AI-5. Imagino você, Vilma, com um carimbo de censura na mão — arma formidável! – detentora exclusiva da faculdade de permitir ou não que alguém leia, fale ou pense. Para nossa sorte e infelicidade sua, vivemos tempos mais claros. E você, faça o que fizer, diga o que disser, jamais impedirá meu pai de ler, escrever, falar ou pensar. Nem meu pai nem ninguém.

“Portanto, Vilma Rosa, não acenda fogueiras com livros. O fumo do livro incinerado escurece uma nação.

“Cada um de nós tem seus próprios ídolos. Sorte do meu pai, que fez boas escolhas. Os seus, parecem ser o Index Librorum Prohibitorum, o Santo Ofício, Savonarola e Torquemada. Talvez, até Herr Goebbels... Eu, que também tenho os meus, cito um deles: você vai amargar vendo o dia raiar sem lhe pedir licença...

“Lembre-se, Vilma, você é apenas uma filha. Você é apenas uma herdeira que avilta a herança magnífica que recebeu, constatar que nem tudo que Guimarães Rosa nos deixou é tão bom quanto a sua obra literária”.

SERVIÇO

Antonio Carlos Navarro, editor da Libre Editorial, colocará em breve Sinfonia Minas Gerais: A Vida e a Literatura de João Guimarães Rosa nas livrarias. Este e outros títulos do catálogo da editora deverão ser pedidos pelo e-mail: atendimento@lereditora.com.br

Ou pelo telefone: (55-61) 3362-0008

Ou ainda na Libri Editorial: SIG (Setor de Indústrias Gráficas), Quadra 3, Lote 49, Bloco B, Loja 59 – Brasília/DF - CEP 70610-430

Os livros de contos O CASULO EXPOSTO e NA BOCA DO JACARÉ-AÇU – A AMAZÔNIA COMO ELA É (último volume da trilogia AMAZÔNIA), de Ray Cunha, também estão disponíveis no catálogo da Libri Editorial.


Com Agências

terça-feira, 19 de maio de 2015

O rio da minha cidade

Tromba d'água em Macapá, cidade localizada à margem do rio
Amazonas, na Amazônia Caribenha (flagrante de Caio Gato)

Em junho de 2007, uma expedição integrada por pesquisadores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), da Agência Nacional de Águas (ANA), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e do Instituto Geográfico Militar do Peru, determinou o local exato da nascente do rio Amazonas, localizada no rio Apurimac, na cordilheira dos Andes, ao sul do Peru. Desde o início da década de 1990, uma equipe do Inpe, chefiada pelo geólogo Paulo Roberto Martini, da Divisão de Sensoriamento Remoto, estudava os rios Amazonas e Nilo, na África, por meio de sensoriamento remoto e geoprocessamento, tecnologias utilizadas no Programa Espacial Brasileiro, além de imagens dos satélites Landsat, da Nasa, a agência espacial dos Estados Unidos, calculando, assim, minuciosamente, a extensão de ambos os rios, da nascente à foz; em julho de 2008, bateu o martelo: o Amazonas configurava-se como o maior rio do planeta.

Conforme o Atlas Geográfico Mundial, o Amazonas media 6.515 quilômetros. Com a nova medição, passou a ter 6 992,06, portanto 139,91 quilômetros mais longo do que o Nilo, que, também segundo o Atlas Geográfico Mundial, media 6.695 quilômetros, nascendo no rio Kagera, próximo à fronteira entre o Burundi e Ruanda, e correndo até o mar Mediterrâneo. A nova medição dele o amplia para 6.852,15 quilômetros. Em maio de 2008, o vice-presidente da Sociedade Geográfica de Lima, professor Zaniel Novoa, após 12 anos de investigação, confirmava a versão do explorador polonês Jacek Palkiewicz, que, em 1996, localizou a nascente do Amazonas e afirmou que o rio sul-americano era mesmo o maior do mundo. Desde que o Amazonas foi batizado, em 1500, foram identificadas nascentes em vários pontos do Peru, até a atual, a 5.179 metros de altitude, próximo ao monte Quehuisha, na região sul de Arequipa, no Peru, e não nas cabeceiras do rio Marañon, como se pensava.

Paulo Roberto Martini comentou que as medições anteriores foram feitas sem o uso de metodologias científicas: “Esse resultado mostra que, às vezes, as verdades mais bem estabelecidas têm de ser revistas porque podem simplesmente não ser verdade. Pelo menos desta vez não temos “acho”. Temos metodologia científica e, por essa leitura, por essa interpretação, você pode colocar nos livros que o Amazonas é maior do que o Nilo”. Numa coisa ele tinha razão. Em 2009, surgiu uma novidade: estudos mostravam que a nascente do Nilo apontava para o rio Rukarara, o que dava ao gigante africano o comprimento de 7.088 quilômetros, 95,94 quilômetros maior do que o Amazonas.

Mesmo assim, o Amazonas é mesmo o maior rio do mundo. Senão vejamos. A bacia amazônica é um oceano doce, um realismo fantástico, uma fronteira misteriosa, pouco conhecida e desprezada pelos governos federais e, pasme-se, pelos próprios governos da Amazônia Clássica, apesar de se constituir na mais espantosa província biológica e mineral do planeta. Em 1500, o navegador espanhol Vicente Yañez Pizón batizou-o de Río Santa María del Mar Dulce; 42 anos depois, o também espanhol Francisco Orellana mudou-o para Amazonas. O colosso marrom, que no estado do Amazonas recebe o nome de Solimões e nos estados do Pará e Amapá, de Amazonas, tem mais de mil afluentes, constituindo-se na espinha dorsal da maior bacia hidrográfica da Terra, formada por 7 mil rios, 25 mil quilômetros navegáveis, abrangendo uma área, segundo a Agência Nacional de Águas, de 6,110 milhões de quilômetros quadrados, 40% da América do Sul, banhando Peru (17%), Equador (2,2%), Bolívia (11%), Brasil (63%), Colômbia (5,8%), Venezuela (0,7%) e Guiana (0,2%).

Da nascente até 1.900 quilômetros, o Amazonas desce 5.119 metros; desse ponto até o Atlântico, a queda é de apenas 60 metros. Suas águas correm a uma velocidade média de 2,5 quilômetros por hora, chegando a 8 quilômetros, em Óbidos, cidade paraense a mil quilômetros do mar e ponto da garganta mais estreita do Amazonas, com 1,8 quilômetro de largura e 50 metros de profundidade. Fora do estuário, a parte mais larga situa-se próximo à boca do rio Xingu, à margem direita, no Pará, com 20 quilômetros de largura, mas nas grandes cheias chega a mais de 50 quilômetros de largo, quando as águas sobem ao nível de até 16 metros. O Amazonas é navegável por navios de alto-mar da embocadura à cidade de Iquitos, no Peru, ao longo de 3.700 quilômetros. Seu talvegue, nesse curso, é sempre superior a 20 metros, e chega a meio quilômetro de profundidade próximo à foz.

Segundo Admilson Moreira Torres, do Centro de Pesquisas Aquáticas do Instituto de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá (Iepa), e Maâmar El-Robrini, do Grupo de Estudos Marinhos e Costeiros (GEMC), do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); do Laboratório de Modelagem de Oceano e Estuários Amazônicos (Modelaz); e do Centro de Geociências da Universidade Federal do Pará (UFPa), a descarga hídrica do rio Amazonas é tão gigantesca que reduz a salinidade superficial do mar no oceano Atlântico tropical. A descarga média é de 180 mil metros cúbicos de água por segundo, um quinto, ou 16% da água doce despejada nos oceanos do mundo. Em maio, sobe para 220 mil metros cúbicos por segundo e, em novembro, cai para 100 mil metros cúbicos por segundo; 65% do fluxo vaza pelo Canal do Norte, que despeja até 160 mil metros cúbicos de água por segundo. Trata-se do único rio no planeta a apresentar estuário e delta. Com cerca de 60 vezes mais vazão do que o Nilo, calcula-se que o tributo do Amazonas ao mar é suficiente para encher 8,6 baías de Guanabara em um dia.

Assim, o rio fertiliza o mar com sua água túrbida de húmus, além de espantosos 3 milhões de toneladas de sedimento, por dia, 1,095 bilhão de toneladas por ano. O resultado disso é que a costa do Amapá está crescendo. A boca do rio, escancarando-se do arquipélago do Marajó, no Pará, até a costa do Amapá, mede em torno de 240 quilômetros, e sua água túrgida penetra cerca de 320 quilômetros no mar, atingindo o Caribe nas cheias, e, juntamente com outros gigantes do Pará e Amapá, contribui para que a Amazônia Azul setentrional seja a costa mais rica do planeta em todo tipo de criatura do mar, especialmente a costa amapaense, pois o húmus despejado pelo Mar Doce no Atlântico torna-a uma explosão de vida, no Brasil mais mal guardado pela Marinha de Guerra e menos estudado pela academia.

Calcula-se que o tributo que o Amazonas oferece ao mar é suficiente para encher 8,6 baías de Guanabara em um dia. Assim, o rio fertiliza o mar com sua água túrbida de húmus, além de espantosos 3 milhões de toneladas de sedimento, por dia, 1,095 bilhão de toneladas por ano. O resultado disso é que a costa do Amapá está crescendo. A boca do rio, escancarando-se do arquipélago do Marajó, no Pará, até a costa do Amapá, mede em torno de 240 quilômetros, e sua água túrgida penetra cerca de 320 quilômetros no mar, atingindo o Caribe nas cheias, e, juntamente com outros gigantes do Pará e Amapá, contribui para que a Amazônia Azul setentrional seja a costa mais rica do planeta em todo tipo de criatura do mar, especialmente a costa amapaense, pois o húmus despejado pelo Mar Doce no Atlântico torna-a uma explosão de vida, no Brasil mais mal guardado pela Marinha de Guerra e menos estudado pela academia.

Se mais de um terço de todas as espécies do planeta vive na Hileia, a bacia é berço de mais de 2.100 espécies de peixes, 900 a mais do que as dos rios da Europa. Só a bacia do rio Negro, afluente da margem esquerda do Amazonas, contém mais água doce do que a Europa. Somando-se às 1.200 espécies do Atlântico Norte, a Amazônia é um santuário de 3.300 espécies. “O que me intriga, não apenas no conteúdo da educação fundamental brasileira, mas também na base de informações científicas e acadêmicas no Brasil, é a pobreza de informações ambientais e biológicas sobre essa região, batizada de Mar Dulce pelo navegador espanhol Vicente Yañez Pinzón, em 1500, mesmo ano em que Cabral achava o Brasil” – comenta o oceanógrafo Frederico Brandini. Ele lembra que, no Amapá, as autoridades estão pouco preocupadas com o estudo da Amazônia Atlântica. As costas do Amapá e do Pará são um inacreditável banco de vidas marinhas, coalhado de piratas, que vão lá pegar, de arrastão, pescados, lagostas, camarão e outros frutos do mar. Pescadores paraenses já capturaram na altura da Vila de Sucuriju, no município de Amapá, marlim azul de meia tonelada. Nem Ernest Hemingway conseguia espadarte desse porte no Gulf Strean.

Em 2011, pesquisadores do Observatório Nacional anunciaram evidências de um rio subterrâneo numa profundidade de 4 quilômetros abaixo do Amazonas, com 6 mil quilômetros de comprimento, batizado de Hamza, em homenagem a um dos pesquisadores, o indiano Valiya Hamza. Porém tudo o que escrevi neste artigo é apenas realismo fantástico. A Amazônia é ainda uma fronteira, uma colônia, agora sugada pelos governos que se alternam em Brasília, pela a aristocracia de hoje – multinacionais e megaempresários – e ONGs e políticos perigosos, que chegam a agir como laranjas dos países hegemônicos.

A joia do rio Amazonas é Macapá, a capital do estado do Amapá. A cidade tremeluz na Linha Imaginária do Equador, debruçada na margem esquerda do Canal do Norte, quase na boca do gigante, quando o monstro penetra o azul atlântico. E à noite, os jasmineiros soluçam no ar saturado de espilantol.

sábado, 16 de maio de 2015

Papai faz 100 anos


BRASÍLIA, 16 DE MAIO DE 2015 – Alguns dos meus ídolos – Ernest Hemingway, Jack London, Antoine de Saint-Exupéry – manifestam duas características em comum: são escritores classe A e foram homens de ação. Um homem de ação é aquele que pensa e age simultaneamente, e também não vive quieto, pois está sempre metido em alguma aventura. A própria vida é sua grande aventura, até que, no caminho, é derrotado pela barreira da dimensão física, mas não é vencido, e passa a povoar o universo azul. Meu pai, o maior dos meus ídolos, não era escritor, mas era um homem de ação, e me contou histórias eternas.

Quando, aos 5 anos, descobri, no quarto do meu irmão mais velho, Paulo Cunha, que seria escritor, ao meio de uma galáxia de gibis, revistas e livros, meu pai tinha 44 anos. Media 1,68, era seco e forte, o rosto oval, olhos castanhos e oblíquos, e usava uma loção à base de pinho após raspar, com navalha, o rosto, deixando apenas o bigode. Foi o homem mais corajoso que já encontrei; nada o intimidava. Internava-se na selva dias seguidos, sozinho, e era capaz de meter uma bala no buraco de outra, a mais de 100 metros de distância. Ele não era escritor, mas escreveu alguns poemas, que se perderam no tempo.

Lá pelos 14 anos, quando comecei minha carreira de escritor, trabalhando num poema, que também se perdeu, dedicado a poeta Alcinéa Maria Cavalcante, uma ninfeta completamente linda, peguei os originais do papai e li alguns dos poemas na Rádio Educadora, não me lembro mais se num programa do João Lázaro, ou do Luiz Tadeu Magalhães. Papai soube e me passou uma reprimenda. Mas senti, ali, naquele momento, que, de alguma forma, ele não se importou muito que eu tivesse lido publicamente seus poemas, e isso me deixou feliz, pois agradar o ídolo é para o fã o sonho mais ousado.

Papai não era escritor, mas foi um extraordinário contador de histórias. Leu Tarzan, de Edgar Rice Burroughs, e contava a história para nós, meus irmãos e eu, como se Tarzan fosse real. Porém o que mais me fascinava eram as aventuras do próprio papai, especialmente quando se internou na selva profunda e foi atraído por uma sucuriju. Tonto, quase desmaiando, foi salvo pelo seu anjo da guarda; conseguiu avistar a cabeça da sucuri, apoiou o rifle numa forquilha e estourou a cabeça da serpente, uma cabeçorra do tamanho de uma lata de leite Ninho.

Papai chefiava todo o trabalho pesado no Aeroporto de Macapá, dos Serviços Aéreos Cruzeiro do Sul. Começava sinalizando à chegada dos Douglas DC-3, abastecia os aviões e os despachava. A primeira vez que o vi fazendo isso fiquei deslumbrado, e quando fui autorizado a entrar no avião foi como se houvesse entrado numa nave espacial. Meu pai conversava com os pilotos da nave e entrava no avião como se estivesse em casa, e serviram-me sanduíches e biscoitos inimagináveis.

Apenas uma vez o vi fraquejar. Foi quando a tragédia invadiu a Casa Amarela, a casa da minha infância, na esquina das ruas Iracema Carvão Nunes e Eliézer Levy, onde hoje uma seringueira plantada por meu pai no ano de nascimento do meu irmão, o gênio do pincel Olivar Cunha, intercepta o muro do Colégio Amapaense. Foi quando anunciaram a morte do meu irmão Francisco Pereira Cunha. Era 22 de novembro de 1965. Francisco tinha 18 anos e era belo como Zeus, e imortal como todo jovem. Meu pai foi atingindo por um raio. Caiu numa cadeira, mole, sem tônus, os olhos, sempre tão interessados pela vida, gritavam de dor. E logo depois veio o segundo choque: o corpo chegando. Não compreendi bem aquilo, apesar de ter 11 anos. Para mim, a matéria era para sempre, e só fui entender o que se passara quando, no Cemitério São José de Macapá, vi todos se sacudindo em choro, como chuva que não passa nunca.

Meu pai tinha 57 anos e eu 17, em 1972, quando peguei um barco para Belém e de lá, de carona pela Belém-Brasília, em construção, fui até Brasília, de onde parti para o Rio de Janeiro, onde vivi durante dois anos em Copacabana. Retornei a Macapá e, ainda inquieto, tomei a estrada novamente, até Buenos Aires, onde permaneci durante um mês, trabalhando como carregador de fardos de trapo, utilizado em pequenas oficinas, para um judeu-argentino que fora comando israelense, e que me viu na rua, no dia em que cheguei a Buenos Aires, identificou-me imediatamente como brasileiro, não me largou mais, pois adorava bater papo comigo sobre o Brasil, e sobre tudo.

Em 1975, retornei a Macapá e tentei voltar aos estudos, interrompidos no quarto ano ginasial, no Colégio Amapaense. Mas a inquietação não passara e resolvi conhecer a família do meu pai, em Manaus. Na ida, estacionei em Santarém, onde Paulo Cunha morava, e trabalhei na Rádio Difusora de Santarém, como redator e apresentador do jornal falado, durante um mês. Então parti para Manaus. Assim que cheguei e me hospedei na casa da tia Isabel, procurei saber o endereço do jornal mais central da cidade e fui até lá. O Jornal do Commercio ficava num prédio neoclássico na Avenida Eduardo Ribeiro, e exibia uma placa na porta: “Precisa-se de repórter policial”. Subi, procurei o diretor de redação, Cidade de Oliveira, e lhe disse que a vaga era minha. No dia seguinte, comecei a trabalhar.

No dia 6 de março de 1977, recebi um telefonema de Laurindo Banha, compadre do papai. Ele morrera, de colapso cardíaco fulminante, como árvore atingida pelo raio. Naquela época eu morava sozinho numa casa no bairro de São Francisco, onde o artista plástico português Álvaro Pascoa guardava dezenas de telas do pintor amazonense Hahnemann Bacelar. Só fui me dar conta de sua morte cinco anos depois, em 1982, em Belém, cursando Jornalismo na Universidade Federal do Pará (UFPa.), aos 28 anos. Meu pai morreu com a mesma idade que Ernest Hemingway, aos 61, e, naquela época, eu já conversava com Papa nos bares da mente, quando o desejo de também bater longos papos com papai começou a se avolumar na minha alma.

Em carta de 8 de novembro de 1991, a mim endereçada, meu irmão caçula, Ricardo Cunha, graduado em História e pesquisador da nossa árvore genealógica, diz, sobre nosso pai: “Nasceu em Sobral, Ceará, e veio criança para a Amazônia. Seu primeiro emprego foi o de trabalhar na lavoura, com a mãe, Rosa Maria Cunha, para sustentar as irmãs, Isabel, Maria e Cunhã, já que seu pai, Manuel Raimundo Cunha, morreu quando ele e seus irmãos tinham tenra idade. Foi capataz de quadreiro (capinador de campo de seringal) e serrador na Companhia Ford Motors, em Belterra/PA. Posteriormente, transferiu-se para a Cruzeiro do Sul SA, primeiramente em Belterra, depois em Santarém/PA e, finalmente, em Macapá, onde chegou em janeiro de 1950, seguido pela já numerosa família, em outubro daquele ano. Aposentou-se em 1975 pela Cruzeiro do Sul SA, com 35 anos de serviço ativo. Era alto, forte, sereno, ao mesmo tempo rude; embora semialfabetizado, era inteligente e intuitivo”.

Ontem, recebi e-mail do Ricardo: “Amanhã (16/05), se o nosso pai estivesse vivo, completaria 100 anos de idade. Soldado da borracha, caçador profissional, operário-padrão e um homem absurdamente honesto; um homem que amava as mulheres (desde a juventude até casar-se com nossa mãe), ele sempre representou para mim o arquétipo de macho durão, autossuficiente e mantenedor da entidade familiar”.

Abro aqui um parêntese para dizer que nossa mãe, Marina Pereira Silva Cunha, era a mulher mais bonita do mundo, e forte como as rosas, que são eternas.

Ricardo: “Sei que nunca serei cinco por cento que o nosso pai foi, pois, apesar do verniz de civilização que os estudos me proporcionaram, o nosso pai, perante a vida, foi mais homem do que a maioria dos homens que eu já conheci e mais e mais o admiro perante sua postura filosófica perante a vida: foi um homem cético (ele não acreditava que o homem tivesse chegado à Lua, por exemplo), mas extremamente honesto com seus princípios; não proibiu que a mamãe continuasse sendo católica devota e nem aos seus filhos, e também não vendeu seus princípios para agradar quem quer que seja.

“Amanhã, irei à missa, como faço costumeiramente todos os sábados, e até pensei em mandar rezar uma missa em ação de graças pelo seu centenário, mas depois refleti: aonde quer que o nosso pai esteja, ele esboçaria um sorriso irônico, por não acreditar em sistemas de pensamentos religiosos ou idealistas; daí resolvi respeitar a crença ou não crença do nosso pai e apenas farei um silêncio obsequioso e uma oração para, onde ele estiver, agradecer a sorte de ter sido meu pai e rogar que nos ajude nessa longa caminhada, em busca de felicidade e paz”.

Andei por aí como judeu errante, como dizia Paulo Cunha, durante uma década (1972-1982), em busca de mim mesmo, em busca de paz, e a encontrei ao iniciar a caminhada interior, que nunca termina, pois é uma espiral eterna, o caminho do Tao. Hoje, mergulhado na criação literária, que é tão somente um portal para a dimensão infinita, e no taoismo, quando mergulho no abismo de silêncio mozartiano da Meditação Shinsokan, no oratório do meu quarto, sinto papai e mamãe me abraçarem e me beijarem.

Chamávamos para o quarto do meu irmão Paulo Cunha na Casa Amarela de Quartinho; é lá que costumo encontrar-me com papai, Ernest Hemingway, Jack London, Antoine de Saint-Exupéry e todos os mortos que amo, num bate-papo interminável.

quinta-feira, 30 de abril de 2015

A eutanásia de cada um de nós

É outono em Brasília, e chove. Tem chovido todos os dias, como se ainda estivéssemos no verão. Os dias amanhecem frios, aquele frio dos trópicos, e entardecem nublados. A cidade é a mesma de sempre, parece que foi bombardeada: ruas esburacadas, calçadas estouradas e mato. O matagal cresce com vigor amazônico, chegando até o passeio público, cobrindo as rotas calçadas e invadindo nossa alma, deixando-nos um travo sutil, ao atingir um nervo exposto do corpo etérico. O ex-governador Agnelo Queiroz, que não logrou reeleger-se, deixou para o sucessor um atoleiro. Até hoje, Rodrigo Rollemberg lembra um pugilista que tomou uma saraivada de jabs e no intervalo entre um round e outro é animado pelo seu staff, que o abana, refresca-lhe a cabeça e lhe dá curtos goles de água. Agnelo, que ficou conhecido como Agnulo, homiziou-se na Argentina, deixando para trás a “cidade mais moderna do mundo” mais sucateada do que nunca.

Brasília é um três por quatro do Brasil, especialmente a Praça dos Três Poderes e a Esplanada dos Ministérios. A sensação que se tem é a de Alice no País das Maravilhas. Há uma mulher, com nome de homem, Lula Rousseff, cleptomaníaca e megalomaníaca. Não se interessa por milhões de reais, mas por bilhões. Seca facilmente uma garrafa de 51, na intimidade, e exibe, aos capangas, Romanée Conti. É o capo di tutti i capi. A impressão que se tem é de que o povo brasileiro gosta de ser assaltado. Por exemplo: Jeca Sarney, o maior patrimonialista do Brasil, e que inclusive anexou o Amapá ao Maranhão, com a ajuda dos próprios amapaenses, é claro, assalta o país há mais de meio século, da mesma forma que o urubu velho Fidel Castro, e agora o zumbi Hugo Chávez Maduro, chupa o tutano de cubanos e venezuelanos. No Congresso Nacional, os políticos gargalham, nas suas bacanais.

Continuo frequentando o Conjunto Nacional, e a tomar o espresso do Café Doce Café. Robusta. O passa-passa é agora mais agitado e as mulheres ainda mais bonitas. Já notei que as mulheres são sempre mais belas, tão lindas que parecem nuas. Quase toda semana passo na Livraria Saraiva para ler a Veja. Sobre mim, um alto falante toca música americana da atualidade; guinchos. Costumo passar também na Livraria Leitura, onde, com um pouco de sorte, ouvimos até concertos. Nesses meus passeios, folheio livros que ambiciono ler, mas que ainda não chegou o momento de fazê-lo; observo-lhes o número de páginas, leio o início, ou alguma coisa sobre o autor, aprecio a edição como um todo, e fico imaginando como será bom ver um livro de minha autoria em edição tão primorosa. Outro dia, fui premiado com duas descobertas. Lendo o início de O Jardineiro Fiel, de John le Carré, percebi que a literatura classe A é sempre uma teia, e nunca um fio, como o jornalismo. E folheando Na Outra Margem da Memória, autobiografia de Vladimir Nabokov, percebi que o escritor de primeira categoria tem, sempre, um pé na dimensão do espírito.

Frequento também a Escola Nacional de Acupuntura (Enac), uma portinha no Bloco A da 404 Sul, onde faço o curso de Medicina Tradicional Chinesa. Lá, é uma universidade por definição, um centro de debates, um corredor de opiniões. Certa vez, ouvi de alguém que uma pessoa muito doente deve morrer, deixar-se matar, ou matar-se, para não exaurir seus familiares; uma exaltação à teoria de Charles Darwin, contribuindo, assim, para a evolução da humanidade, numa comprovação ao delírio ariano de Adolf Hitler. Mas há sempre as luzes de alguns mestres no corredor, equilibrando as opiniões que resvalam para o caos, como numa dança de yin e yang na espiral.

A propósito, a eutanásia pode significar uma zona de conforto para os que ficam, mas não haveria um propósito em deteriorar-se em cima de uma cama durante anos, dependendo dos outros para tudo? Há mais mistério entre o céu e a Terra do que supõe nossa vã filosofia, como disse William Shakespeare. Creio que haja sempre um propósito em tudo, e que cabe a cada qual descobrir isso; cabe a cada um descobrir sua missão. Talvez o grande entrave de um candidato a terapeuta seja a dimensão física. E esse nó somente será desfeito quando ele descobrir que o plano físico é nada mais do que uma ilusão, semelhante ao mundo virtual do inseparável celular.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Conto/LATITUDE ZERO


É possível que algumas pessoas execrem este conto, devido à linguagem chula e à violência, ambientadas nos anos 1960, em Macapá. Contudo, trata-se, tão somente, e apenas, de um trabalho de ficção. Advirto que qualquer semelhança com fatos passados é mera coincidência. Ressalto que até as autobiografias, principalmente elas, são apenas ensaios de ficção, nada mais além disso, guardando, é claro, semelhanças geográficas, com pessoas e fatos.

O argumento de LATITUDE ZERO gira em torno de um punhado de artistas, a maioria deles adolescentes, numa cidade ribeirinha da Amazônia, Macapá, e nos anos de chumbo da Ditadura dos Generais (1964-1985), e que começam a fazer descobertas, e a sentir na pele que o esplêndido sol equatorial é vida em estado bruto, mas pode, também, chamuscar aos que não estão preparados para viver em sociedade, e, sobretudo, para ajustar-se numa sociedade, a de Macapá, nos anos 1960, tão colonizada, preconceituosa, machista e antropofágica.

Esta história curta foi publicada inicialmente no livro TRÓPICO ÚMIDO – TRÊS CONTOS AMAZÔNICOS (Edição do autor, Brasília, 2000, 116 páginas), o segundo volume da trilogia AMAZÔNIA, antecedido por A GRANDE FARRA e sucedido por NA BOCA DO JACARÉ-AÇU – A AMAZÔNIA COMO ELA É; e no volume Todas as Gerações – O Conto Brasiliense Contemporâneo (LGE Editora, seleção e organização de Ronaldo Cagiano, Brasília, 2006, 513 páginas).

Para adquirir TRÓPICO ÚMIDO – TRÊS CONTOS AMAZÔNICOS pode ser feita uma solicitação, com nome da pessoa e endereço completo, para: raycunha@gmail.com. Será informado o número de uma conta bancária para depósito de R$ 40, e, o livro, enviado pelos Correios.

PREFÁCIO

Sobre TRÓPICO ÚMIDO – TRÊS CONTOS AMAZÔNICOS escreve Maurício Melo Júnior, escritor e jornalista, apresentador do programa Leituras, da TV Senado:

OBSESSÕES AMAZÔNICAS DE RAY CUNHA

A literatura brasileira está numa encruzilhada. Cada autor atira para um lado e ninguém consegue formatar o que no passado se chamou de movimento. Mesmo em lugares onde se pratica uma literatura regional intensa - Pernambuco e Rio Grande do Sul, por exemplo - não há o senso de união. Isso, se por um lado favorece a diversidade temática, por outro, paradoxalmente, desagrega autores e enfraquece o trabalho de formação de leitores. Embora o ato de escrever seja um exercício de solidão, são a vivência e a convivência que dão ao escritor o estofo necessário para a composição do texto.

O escritor Ray Cunha, nascido na beirada da floresta amazônica, sofre do mal que vitimou parte de seus colegas a partir dos anos setenta: é um escritor desagregado, carente de grupos com quem possa discutir temas, estéticas e formas. Isso fica muito claro em seu livro Trópico Úmido - Três contos amazônicos (edição do autor, Brasília, 2000, 116 páginas), no qual, apesar de uma certa obsessão geográfica, sente-se a ausência da região em sua plenitude. O leitor mais exigente terminará a leitura carente do sotaque e das cores amazônicas, embora fique saciado com o desenvolvimento bem resolvido da trama.

O conto que abre o livro, Inferno Verde, conta a história do repórter Isaías Oliveira em duelo sangrento e perverso com o traficante Cara de Catarro. O segundo texto, Latitude Zero, fala de um grupo de jovens em descobertas sexuais em Macapá. Pode ser visto como um conto de formação, embora carregado do escancaro de Charles Bukowisk, o que é até compreensível em quem sobreviveu às teorias de Freud e à revolução sexual dos anos sessenta. Finalmente, o último conto do volume, A Grande Farra, conta a história de Reinaldo, um repórter que sonha ser escritor, mas, milionário, gasta a vida em bebedeiras e aventuras sexuais.

A linha que liga todos os textos, além da região amazônica, é mesmo a temática da sexualidade. No entanto, este sentimento está muito próximo das práticas vindas com a liberação sexual dos anos sessenta, unidas a um certo sadismo dos personagens. Num pobre exercício de paráfrase com os Atletas de Cristo, que trazem halos angelicais para os nossos atletas de futebol, podemos dizer que os personagens de Ray Cunha são Atletas de Sade. É impressionante a obsessão por um ato doloroso e imposto. Há sempre dominação do macho sobre a fêmea, mesmo quando ela, também filiada à revolução sexual, escolhe seu parceiro. Ainda assim prevalece a força do macho.

Esses personagens construídos pelo autor, por conta da defesa de uma geração perdida, terminam por carregar cores muito iguais. São todos hedonistas, amantes do prazer sobre todas as coisas. Por conta desse sentimento entram de cabeça na vida sem medir qualquer consequência. E fica clara aí a influência de Bukowisk, o velho safado, embora a sensualidade das ninfetas traga para os textos uma certa lembrança de Nabokovisk, o velho também safado, mas um pouco mais pudico. Sobrevive disso tudo um mundo excessivamente cruel, posto que o prazer é o que menos importa aos moços. Todas as relações têm como objeto a sujeição do parceiro.

O poeta Augusto dos Anjos falava em um de seus sonetos da “obsessão cromática”, do que chamava de fantástica visão do sangue se espalhando por toda parte. Ray Cunha trás para a literatura um pouco dessa obsessão, que faz a festa dos repórteres policiais. Há muitas cenas cruéis, com requintes de crueldade, dignos das páginas dos romancistas policiais americanos da década de cinquenta, um período no qual a fineza britânica de Conan Doyle foi substituída pela inspiração de Bram Stoker.

Finalmente, há obsessão geográfica. Para um livro passado na Amazônia isso é bem interessante. No entanto o autor poderia descrever mais e citar menos. Explica-se. É comum por todo o texto o nome de ruas onde moram, vivem e rodopiam os personagens. O problema é que a citação pura e simples do nome da rua simplesmente não remete a qualquer impacto sobre o leitor que não conhece as ruas. O autor poderia descrever as ruas, o que daria uma informação a mais ao leitor, situando-o até no ambiente por onde transitam os personagens.

Fica do livro, entretanto, a construção da história. Há pontos de prisão do leitor no jogo de curiosidades desvendadas aos poucos. O autor sabe manipular bem a trama, levando o leitor ao clímax. Com isso, resgata uma das maiores carências da literatura brasileira atual: o bom contador de história. É que os nossos novos escritores, buscando a universalidade linguística de Guimarães Rosa, esqueceram que ele sabia contar bem uma história. Resultado: renunciaram à narrativa e não ganharam a inventividade estética.

Ray Cunha consegue contar bem suas histórias. No entanto poderia ter trazido o mundo mais amazônico para suas páginas; poderia deixar um pouco as influências estrangeiras e seguir a trilha de autores como Benedicto Monteiro. Isso pode transformá-lo no grande representante da literatura amazônica moderna. Aquele que conseguirá traduzir boa linguagem com boa narrativa, e tudo temperado em um bom caldo de tucupi.

LATITUDE ZERO

O depósito de madeira estava adormecido como tudo o mais na madrugada, exceto a luz do poste debatendo-se para escapar da névoa. A claridade lutava para libertar-se da neblina pegajosa, e, como carnicão rompendo a pelica do tumor, vazava, arrastando-se até o depósito de madeira, infiltrava-se por uma fresta e incidia sobre o cenho franzido de Alexandre. Ele parecia morto, pois respirava imperceptivelmente.

A luz do poste, agora, agonizava na claridade dúbia do amanhecer. Uma chuva pôs-se a cair, adensando o ar saturado de umidade. Alexandre se mexeu, num gesto instintivo de quem está sentindo frio. Encolheu-se mais, agasalhando as mãos entre as coxas. As tábuas sobre as quais se deitara machucavam-no. Isso o despertou. Abriu os olhos como uma boneca: só as pestanas se mexeram. O resto todo ficou imóvel. Depois procurou alguém com o olhar. Viu-o um pouco abaixo. Moacir Canto dormia ainda. Alexandre se levantou, estremunhado, e ficou olhando para Moacir Canto. Apalpou o bolso traseiro à procura da carteira porta-cédula e não a encontrou. Meteu o polegar e o indicador no bolsinho da calça e puxou uma nota de cinquenta cruzeiros. Neste momento Moacir Canto despertou.

– Perdi a bolsa – disse Alexandre. – Mas tinha guardado cinquenta cruzeiros no bolsinho da calça.

– Porra... – disse o outro.

Olharam-se e depois cada qual olhou para si próprio. A farra começara no GEN, o bar do ex-policial, na Rua Tiradentes. Alexandre ganhara as obras completas dos irmãos Grimm em um concurso de contos e vendeu-as para a tia de Moacir Canto por duzentos cruzeiros. Separou uma nota de cinquenta, pô-la no bolsinho da calça e foram para o GEN. Tavares, o ex-tira, estava lá no lugar de sempre, diligente, servindo bebida a dois caras. Alexandre pediu meiota de Pitú. Tavares serviu-os com tira-gosto de genipapo. Limitavam-se a beber. Moacir Canto incrustara-se no silêncio. Livrava-se do rancor que levava consigo cagando em cima dos outros. Certa vez, trepado numa árvore da Praça Veiga Cabral, deu uma cagada tão potente na cabeça de um homem que o derrubou ao chão. Quando o tipo se recobrou, Moacir Canto já tinha se jogado de um galho mais baixo e pôs-se ao fresco quase caindo de tanto rir. Certa noite, pediu a Alexandre para segui-lo de bicicleta. Moacir Canto ia na garupa de outra bicicleta, pilotada por Grosseiro. Ficaram andando um pouco pela Praça Nossa Senhora da Conceição até que passaram por uma moça e uma menina. Grosseiro fez a volta, pedalando sem pressa, e tirou o fino da menina. Moacir Canto se ajeitou e deu tal soco nas costas dela que o barulho ecoou na praça inteira. Mas engraçado foi quando uma noite Moacir Canto achou uma folha de coqueiro e saiu à procura de vítimas com Grosseiro. Alexandre foi atrás para ver. Iam a certa altura da Rua Leopoldo Machado quando avistaram seis estudantes, uma ao lado da outra, ocupando a largura do passeio público e parte da pista. O tronco da folha de coqueiro ia pegar no pescoço dela. Era a mais alta; uma moça rosada e vigorosa. Ela se abaixou na hora e a folha de coqueiro passou voando por cima da sua cabeça. Moacir canto perdeu o equilíbrio e caiu. A moça pegou a folha de coqueiro e desferiu um golpe no queixo de Moacir Canto, que ia se levantando do asfalto. Grosseiro havia estacionado adiante e morria de rir. Alexandre passou por perto de Moacir Canto e salvou-o de seis mulheres furiosas. Para se vingar, Moacir Canto foi à sua casa, pegou um fio elétrico e saiu atrás das moças. Como não as encontrou, atacou uma velha, dando-lhe tal lambada no pescoço que a velha caiu com um grito horripilante.

Ele era um cara assim mesmo. Seu ódio provinha da condição em que o pai deixara a família, na miséria, para enrabichar-se por uma menina de quinze anos, mas que o manobrava como uma puta experiente. No Dia dos Pais, Moacir Canto entrou lá e deu uma paulada na venta do velho, arrancando-lhe pelo menos um dente. O pai de Moacir Canto era policial. Telefonou para a polícia a fim de que pegassem o rapazinho, que devia estar drogado para fazer um negócio daqueles. Ficou por isso mesmo. A sorte de Moacir Canto era sua beleza. Tinha um belo queixo quadrado, o rosto oval, sobrancelhas bem feitas e cabeleira leonina. Seus olhos, entretanto, despertavam medo, sobretudo quando estava estupidificado de maconha. Certa vez, Alexandre, Moacir Canto, Grosseiro e Galego Demônio amanheceram na Praia do Barbosa. Alexandre e Grosseiro dormiam ainda. Moacir Canto e Galego Demônio já haviam acordado há algum tempo quando avistaram a menina. Correram em cima dela, agarraram-na e arrastaram-na para detrás de um aturiá. Alexandre e Grosseiro acordaram com os gritos, correram para lá e viram Moacir Canto tentando penetrar a menina por trás, enquanto Galego Demônio segurava-a pelos cabelos, pelejando para a menina chupar o pênis grande, mole e purulento que lhe empurrava no rosto. De todos eles, Alexandre era o único que tinha um pouco de sensatez, e Grosseiro o atendia como a um cão. E assim livraram dos répteis a menina.

– Está na hora da gente se escafeder – disse Moacir Canto, no GEN.

Pegaram a Rua Cândido Mendes e seguiram em direção ao Igarapé das Mulheres. Todas as noites, Alexandre ia à casa de Angélica, Sílvia e Graciette. Angélica estava no portão da varanda. Era pequena e fofa. Usava os cabelos, de cor indefinida, bem curtos. Tinha os olhos da cor dos cabelos e era estrábica, e tudo chamava a atenção no seu rosto: o nariz arrebitado e os lábios vermelhos e entreabertos, como rosa despedaçada e sumarenta. Viam-se seus dentes sob os lábios entreabertos. Isso, e os olhos, davam-lhe um ar de avidez ninfomaníaca. Sílvia parecia uma fada morena. Tinha a pele cor de leite, os cabelos negríssimos e longos, e os olhos azuis, da cor dos olhos do pai. Vivia sorrindo, com seus lábios rosados. Tinha os dedos longos, ágeis ao piano. Era bem mais alta do que Graciette. Os olhos de Graciette ficavam entre castanho e verde. Usava unhas longas, que pintava de vermelho, e punha uma língua tão comprida na boca dos rapazes que os sufocava. Era ruiva. Puxava a mãe, uma potra ainda jovem que tinha o mesmo olhar canibalesco de Angélica.

As duas outras garotas estavam na sala ouvindo os Beatles. Nem bem os dois chegaram, Sílvia foi logo convidando Alexandre para dançar. Ele ficou excitado. Sabia o jogo. Ela se encostava nele, os longos cabelos negros caindo pelo rosto e pelos ombros de Alexandre. Ela não usava soutien; os seios duros espetavam-no, e ele, de vez em quando, via os bicos rosados dos peitos através da blusa meio desabotoada. Alexandre ia ficando cada vez mais descontrolado. Ela batia com o púbis sobre o pênis de Alexandre, rijo como um osso, e ele aparava as batidas, prestes a gozar.

– Vamos para o quarto?  disse Alexandre.

Ela não falou nada. Puxou-o pela mão em direção ao quarto, amplo e bem arrumado. Sílvia era tão delicada! Desafivelou-lhe o cinto, abaixou o fecho éclair – ele não usava cueca –, pôs o pênis duro para fora. Ela, com seus olhos azuis, fitava maravilhada o pênis.

– Caralinho lindo! - disse, e desceu, suavemente, seus lábios rosa sobre a glande vermelho-escura. Ele não aguentou muito tempo. Logo se desintegrou em um gozo suculento, inundando aquela boca de fada, respingando de esperma os lábios sedentos.

Três pares de olhos acompanhavam tudo, sem perder nada. Ao ver o suco espermático escorrendo da boca da irmã, Angélica se despiu num piscar de olhos. Tinha a bundinha mais linda do mundo. Estava gozando só de ver. Possuía o dom dos gozos múltiplos. Pegou os cabelos de Alexandre e puxou-o para seu púbis. Cheirava a Mateus Rosé, e o líquido que escorria pela sua coxa tinha sabor de acme. Ao ver o traseiro de Angélica, Moacir Canto enfiou-se ali. Graciette masturbava-se com seus dedos de garras e chorava.

Era meia-noite. Os cinco estavam banhados, na sala, bebendo vodka e ouvindo os Beatles, quando a mãe das meninas chegou. O pai delas, como sempre, estava em Belém. Dona Frênia deu um alô para os garotos, a caminho do seu quarto.

– A velha está bêbeda – Moacir Canto cochichou para Alexandre.

Foi neste momento que a garrafa de Wyborowa do pai das meninas, que Alexandre bebeu, subiu de uma vez para a cabeça dele.

– Vou fodê-la – disse, ensaiando ir para o quarto da dona Frênia.

Moacir Canto estava em melhor estado. Atirou-se de cabeça nele. As meninas jogaram-se também em cima dele. Acabou tudo numa risada geral.

Quando Alexandre voltou a si estava deitado no meio da Rua Cândido Mendes, de braços estendidos como Jesus Cristo na cruz, gritando: fodam-se seus filhos da puta. Então começou a chover. O chofer do táxi não estava vendo as coisas muito bem e pegou um susto ao vislumbrar aquele vulto erguer-se do asfalto quase em cima do carro. Parou para averiguar do que se tratava. Alexandre entrou no táxi. Moacir Canto veio correndo da calçada, onde estivera vomitando, e entrou no carro.

– Bar Caboclo – Alexandre disse ao motorista.

A chuva engrossara. Da mesa onde estavam podiam ver a chuva estalar na calçada. Bebiam em silêncio a meiota, em pequenos goles de apreciadores de bebida.

– Vamos voltar à casa das meninas? – Alexandre sugeriu. Moacir Canto levantou-se incontinenti.

– Desta vez quem vai comer a velha sou eu – disse.

– Está bem – Alexandre concordou, chamando o garçom e pagando a meiota.

Saíram do bar na chuva, que estava mais fina agora. Atravessaram a Rua Cândido Mendes na altura do antigo Igarapé da Fortaleza. Escorregaram numa poça d’água no outro lado da rua. Chapinharam lá dentro, até que Moacir Canto conseguiu levantar-se e arrastar Alexandre para fora da poça. Andaram em direção ao rio Amazonas, mas pararam logo adiante, ao verem que alguém passava a chuva debaixo de uma marquise. Aproximaram-se. Era uma moça. Moacir Canto disse alguma coisa para a moça. Ela tentou falar, mas era muda. Moacir Canto pegou-a e começou a se esfregar nela. A moça tentava afastá-lo. Moacir Canto subiu a saia dela e depois desceu a calcinha. A muda começou a rir e depois procurou beijar Moacir Canto. Ele se desviava dos seus beijos e aquilo fazia Alexandre se torcer de rir. Quando parou de rir não viu mais a muda. Moacir Canto estava com uma calcinha na mão. De quem diabo era aquilo? Subiram por uma escada lá mesmo naquele prédio.

– Conheço um cara que mora em um apartamento lá em cima – disse Moacir Canto. – É da polícia e é veado.

Bateram lá e logo um sujeito branquela meteu a cara na porta entreaberta.

– Oh! Você!  disse para Moacir Canto, olhando também para Alexandre. – Entrem! Entrem! Vou preparar um drink para vocês. Por que vocês não tomam banho?

Serviu duas doses generosas de whisky e foi ver o frango que pusera no fogo. O cheiro da canja empestava o ambiente, mas para os bêbedos nada importava. Sentaram-se, com o whisky ao lado, e puseram-se a bater papo.

– Tenho roupas secas... – interrompeu o escrivão, tentando atrair a atenção deles.

– Basta o teu whisky – disse Moacir Canto.

– Isto aqui é um buraco – dizia Alexandre, deixando o escrivão desconfiado. – Uma merda! Senão vejamos: que escritor temos aqui? Nenhum! Há o R. Lima, mas o R. Lima não escreveu mais do que um livro de poemas, que teve uma tiragem ridícula de quinhentos exemplares. E por que? Porque não há editora, porque não há público, porque não há aplauso.

O escrivão ficou menos preocupado ao perceber que não falavam do seu apartamento.

– É uma sepultura... – disse Moacir Canto.

– Uma sepultura e uma fábrica de poetastros – disse Alexandre. – Vês o caso do Galego Demônio, que lança um livro mimeografado por semana...

– Não sei como aquele traficante que banca as baboseiras dele ainda não percebeu que se trata de um psicopata mitômano e megalomaníaco.

– No seu livro mais recente ele relata os últimos estupros que cometeu – disse Alexandre.

– Nem a irmã dele escapou – disse Moacir Canto. – E com aquela gonorreia crônica...

– Quis comer o diretor do Colégio Amapaense, o professor Olhudo.

No dia em que isso aconteceu, Alexandre estava estudando em casa para fazer quatro provas logo mais à noite quando Galego Demônio chegou com seu livro “Eu Imortal” debaixo do braço.

– Vamos já para Serra do Navio – disse a Alexandre.

– Tenho quatro provas hoje à noite.

– O estudo formal embota os neurônios. Já está tudo certo: vagão-leito especial no trem, suíte no hotel e duas professoras mineiras para uma bacanal.

Alexandre ficou calado.

– Partamos já para a aventura! A rotina é um veneno lento. O bar nos espera. Serra do Navio é um apelo irresistível com suas fêmeas mineiras.

– Resolvi ir, mas não porque Galego Demônio tivesse me convencido a ir, com aquele papo dele. Estava entediado só de pensar nas quatro provas.

Moacir Canto serviu novas doses de whisky e Alexandre pôs-se a contar o resto do caso. Já anoitecia quando ele e Galego Demônio saíram da casa de Alexandre, entraram no bar da esquina e pediram uma meiota. Não demoraram lá e foram a seguir para o Picolé Amigo, um bar onde R. Lima bebia de vez em quando. Com efeito, encontraram-no lá.

– Lembro-me que no Picolé Amigo houve uma discussão entre R. Lima e Galego Demônio. Galego Demônio estava botando muita banca e R. Lima disse que seu livro deveria se chamar “Eu Idiota”, porque ao ler os originais de “Eu Imortal” encontrara jacaré com g.

– Do ponto de vista da linguística é possível – Galego Demônio se defendeu. – Sobretudo para um niilista igual a mim.

– E foi com o niilismo dele que eu tomei no rabo – disse Alexandre para Moacir Canto. Acabara resolvendo, no Picolé Amigo, que deveria fazer as quatro provas, e não teve quem o dissuadisse da ideia. Galego Demônio foi com Alexandre para matar algumas questões. Ao chegarem ao Colégio Amapaense um inspetor disse-lhes que não podiam entrar senão uniformizados. Alexandre pediu para falar com o diretor. Impressionado, ou melhor, narcotizado com o bafo de bebida, o inspetor não opôs objeção em anunciá-los ao diretor, que estava ali perto fiscalizando ele próprio se os seus meninos encontravam-se devidamente uniformizados. Quando Alexandre e Galego Demônio se aproximaram do diretor ele estava atendendo um recruta do Exército que saíra do quartel diretamente para o Colégio Amapaense, de modo que não pudera vestir o uniforme de estudante. Levado pelo hábito, o rapaz se perfilou.

– Ô idiota! Esse gajo não passa de um professor de História! – observou Alexandre para o recruta.

– O quê?! – gaguejou o diretor.

– Seu merda, foste tu que levaste “A Galinha” para o governador, aquele ditador do caralho – disse Alexandre, referindo-se ao jornalzinho que lhe rendera dez dias de suspensão.

– Vou chamar a polícia – disse o diretor, com seus olhos que eram esbugalhados de nascença.

Galego Demônio tinha visto umas fêmeas gostosas e tentou pegar no rabo de uma delas. A moça deu um grito que chamou a atenção do diretor; ele passou uma reprimenda em Galego Demônio. A reprimenda foi mesmo que nada. Galego Demônio já estava com o pau para fora e tentou metê-lo no diretor.

– Foi uma cena muito engraçada aquele veado de um figa correndo com o Galego Demônio atrás, com aquele pau mole dele, pingando gonorreia. Descemos correndo a escada, pois a polícia já fora chamada, e voltamos ao bar onde deixáramos R. Lima. Pedimos mais uma garrafa de Pitú. Iríamos cedo para Santana e de lá embarcaríamos para Serra do Navio. Mais ou menos à meia-noite R.Lima foi embora e ficamos só nós dois no bar. Tomamos mais duas e zarpamos. Daí não me lembro de mais nada.

Alexandre cochilou. Acordou com uns respingos quentes no braço. Moacir Canto tinha ido à cozinha, aberto a panela de canja e levou-a para a sala, quando a panela virou, espalhando canja pelo chão. O escrivão cantava alegremente no banheiro. Moacir Canto pegou o que ainda restava da canja na panela, foi até a porta do banheiro e jogou a canja lá para dentro. O escrivão deu um berro. Ao ouvir o grito, Alexandre levantou-se rapidamente pronto para correr. Antes de ir embora Moacir Canto olhou em volta e depois, como se lembrasse de algo, pegou a chave da porta. Nestas alturas o escrivão saiu do banheiro chorando e todo melado de canja. Moacir Canto saiu e fechou a porta por fora. Lá embaixo, jogou a chave no esgoto a céu aberto, que cortava a rua longitudinalmente.

– Vamos pegar um ar lá na amurada? – disse Alexandre.

– Vamos pegar um rato podre no pescoço? – disse Moacir Canto, atirando nas costas de Alexandre uma ratazana morta, que encontrara na calçada, correndo depois para a amurada que dava  para o rio Amazonas, ao lado da Fortaleza São José de Macapá.

Alexandre se abaixou numa poça de água e lavou o pescoço. Depois andou em direção a um depósito de madeira. Moacir Canto veio também e entrou no depósito. Alexandre adormeceu recordando “A Galinha”, o jornalzinho que não passou do primeiro número. Havia, em sala de aula, um ricaço. O pai era dono de boa parte da cidade. Ele se ofereceu para financiar o jornal. Foram, então, uma noite, para a casa do ricaço. O filho dele os levou para o gabinete de trabalho do velho. Lá pelas tantas, Alexandre tirou o telefone do gancho e discou um número qualquer. Nessas alturas, o velho estava tomando soro no quarto dele e apanhou a extensão para saber do que se tratava àquela hora da noite, quase onze horas.

– Alô! – disse uma voz de mulher, sonolenta.

– Quem é?

– Solange – disse a voz.

– Oh! Solange! Minha doce cadelinha, vaquinha linda, minha bocetinha fedendo a merda, vou já aí para empurrar meu caralho na doçura do teu jardim de trás...

O ricaço arrancou a agulha da veia, pegou um cinto e irrompeu no escritório. O velho entrou dando lambada no filho dele. Havia, além de Alexandre, outro redator, um garotão de cabeça raspada, que montou na sua bicicleta e se evaporou.

O primeiro número do jornal, e único, saiu com uma matéria sobre o governador, o general ditador do Amapá, Ivanhoé Gonçalves Martins. Dizia que ele passava o dia de binóculos por trás das persianas da sua sala, no Palácio do Setentrião, tentando ver, do outro lado da Praça da Bandeira, as calcinhas das estudantes que se sentavam sobre o muro do Colégio Amapaense. Sobre o diretor do educandário dizia que tinha um acordo tácito com algumas de suas alunas, de modo que lhes dava nota dez se elas se arreganhassem e o deixassem ver suas calcinhas nas aulas de História. Na mesma edição foram escolhidos os dez mais punheteiros. O diretor enviou um exemplar do jornal ao secretário de Educação, que o enviou ao governador. Mas nesse trâmite o exemplar desapareceu. Houve um inquérito e os responsáveis por “A Galinha”, que na expectativa dos rapazes deveria pôr ovos de ouro, acabou rendendo-lhes dez dias de suspensão.

Naquele mesmo dia tropical úmido Galego Demônio entrou no Gato Azul e pediu uma dose de rum Montilla. Fazia aquilo ordinariamente e bebia até o anoitecer. Então voltava para casa, jantava e saía de novo. Naquele dia bebera além do normal. Ao retornar a casa não encontrou ninguém. Estava sozinho. O pai fora comprar açaí no arquipélago do Marajó; a mãe estava em Belém; a irmã, sabe Deus. Foi ao fogão. Comeu nas próprias panelas. Sentia-se pesado. Foi ao quarto. Deitou-se. Dormiu. Bunda de Breque, a irmã, estivera escondida, espreitando-o. A claridade da luminária do poste vencia o piche da noite sem estrelas e entrava no quarto, banhando os móveis com um manto irreal. Galego Demônio dormia de peito para cima. Assim, dormindo, era belo como qualquer jovem da sua idade. A primeira machadada pegou no lado do pescoço. Galego Demônio acordou como se estivesse impulsionado por molas. Tentou agarrar-se em alguma coisa e começou a gorgolejar como porco sangrando. Bunda de Breque ligou a lâmpada e olhou para Galego Demônio. Ergueu de novo o machado. Galego Demônio fitou-o aterrado e começou a arrastar-se para um dos lados da cama, já empapada de sangue. Bunda de Breque depôs o machado no chão, com o cabo encostado na cama, desafivelou o cinto de Galego Demônio e arriou sua calça, juntamente com a cueca. O pênis de Galego Demônio estava com os curativos purulentos como sempre. A machadada deixou-o apenas pendurado pela pele do escroto. A próxima machadada seccionou-o. Depois, Bunda de Breque aprumou bem o machado, como se fosse dar o golpe final em um tronco que estivera tentando partir ao meio, e desceu-o. A cabeça de Galego Demônio pulou e foi bater na parede. Bunda de Breque arrastou o corpo mutilado, desceu as escadas, caminhou até o monturo e atirou-o sobre o monte de caroços de açaí. Foi buscar a cabeça e jogou-a também no monte de caroços. Chovia como o diabo. Bunda de Breque voltou ao quarto de Galego Demônio, levando seu trompete, e pôs-se a tocar “O Silêncio”.