terça-feira, 31 de março de 2015

Olivar Cunha: a dimensão do gênio


O PINTOR OLIVAR CUNHA viveu em Belém nas décadas de 1970/1980, quando produziu algumas dezenas de telas que o colocam como um dos mais importantes artistas plásticos contemporâneos: seus mendigos do Guamá, subúrbio da Cidade das Mangueiras, são tão chocantes quanto a colonização do Inferno Verde, que explode na ignorância e na fome, como pedrada na cara.

Depois de morar no Rio de Janeiro, onde frequentou o Parque Lage nos anos de 1990, Olivar Cunha consolidou sua posição como um dos grandes expressionistas contemporâneos com a série de animais agonizando no esgoto das grandes cidades, como na impressionante acrílica sobre tela Tuiuiú Crucificado, sobre o esgoto em que se transformou a baía de Guanabara.

As passarelas nos subúrbios das cidades amazônicas, as naturezas mortas, detalhes da Fortaleza São José de Macapá, o maior forte colonial português, no estuário do rio Amazonas, as Lavadeiras do Sol, contêm espilantol, o princípio ativo do jambu, detalhe indicador de que o grande artista plástico pinta a alma das suas criaturas, sejam elas pessoas ou paisagens.

O pintor nasceu em Macapá, a cidade do meio do mundo, na esquina do maior rio do planeta, o Amazonas, e a Linha Imaginária do Equador, na Amazônia Caribenha, no mesmo dia em que nosso pai, João Raimundo Cunha, plantou a seringueira que intercepta o muro do Colégio Amapaense, na Rua Eliezer Levy. Aos 15 anos, expôs sua primeira individual. O contista, compositor, poeta, ensaísta e sociólogo amapaense Fernando Canto é colecionador da obra e um dos que melhor conhecem o trabalho do gênio amazônida.

Olivar Cunha, que completa 63 anos neste 31 de março, tornou-se um dos mais fecundos e talentosos pintores da Amazônia. Hoje, vive no paradisíaco Jacaraípe, distrito atlântico no município de Serra, na grande Vitória, onde se consolida também como restaurador, recuperando obras sacras de igrejas da região.

As telas de Olivar Cunha gritam como o coração das trevas, mas também pulsam como espilantol no rio da tarde, prenhe do choro dos jasmineiros noturnos.

Olivar Cunha aparece no romance HIENA, de Ray Cunha.

Tuiuiú Crucificado
Baixada em Belém, e o pintor
Pedinte
Mendigo


A cerca


Auto-retrato

quinta-feira, 26 de março de 2015

Conversa com Fernando Canto

As roseiras estão grávidas. Entre os botões há uma rosa vermelha, do tamanho do meu coração. Mostrei ao Fernando Canto o meu jardim, anos atrás, quando veio me visitar. O jardim estava mal cuidado, mas havia pelo menos uma rosa amarela para mostrar ao poeta. Tenho também dois jasmineiros. Nas noites ardentes, o perfume invade minha memória. Tenho ainda leea rubra, um belo comigo-ninguém-pode, violetas, lírios, jibóias e samambaias. Há, certamente, outras plantas, como em todos os jardins. Essas flores, e borboletas, e fadas, povoam o jardim que brota no meu coração.

Gosto de ouvir o silêncio, os rumores, que, às vezes, nos chegam de outros planetas, e de percorrer as lombadas dos meus livros de cabeceira na estante. Apanho Cheiro de Goiaba, de Gabriel García Márquez; um bate-papo entre Gabo e Plínio Apuleyo Mendoza, publicado em 1982. Em espanhol, El Olor de la Guayaba. Este livro contém todo o trópico, e inunda, como tempestade, os campos das minhas lembranças.

Nos dias quentes, mulheres povoam as ruas e os shoppings trajando roupas folgadas e decotadas. Recendem a Chanel 5, maresia e gim. Lembras-te, Fernando Canto, daquela noite, quando nos embriagamos com gim? E houve outras noites regadas a daiquiri, Cerpinha e Strega.

Troncos de árvores, gigantescos, se espraiam até onde a vista alcança, desde a Fortaleza São José de Macapá ao Igarapé das Mulheres. O Trapiche, defronte ao Macapá Hotel, é uma rua comprida, sem semáforos e sem esquinas. Se acaso é maré cheia e venta, ondas explodem no quebra-mar. Mulheres bonitas espalham o rastro perfumado no rio azul da tarde, quase noturno. Na Rua Mário Cruz, Isnard Brandão Lima Filho ouve o silêncio, enquanto espera a grande dama, a noite, para ofertar rosas à madrugada.

O rio Amazonas açoita o quebra-mar com sua força descomunal. Os troncos foram removidos faz muito tempo. O Trapiche se afoga no Mar Doce e, longe, um navio, grande como uma cidade, se move como lesma para o norte. Logo se encontrará com o Atlântico. Fernando Canto degusta Cerpinha. Sirvo-lhe de nova taça. Fernando Canto também ouve o silencioso aproximar-se da noite, e merengue. O poeta, quem sabe, trabalha um poema, ou compõe uma canção, ou engravida de um conto, ou, quem sabe, de um romance, enquanto voa na noite iluminada por mulheres inacreditáveis de tão lindas.

Quanto a mim, há muito tempo não me sinto tão feliz. Estou em Macapá, bebendo Cerpinha enevoada com Fernando Canto.

– A poeta logo virá – diz Fernando Canto.

Sim. Aguardo-a. Ela esparge rosas colombianas à sua passagem e tem o poder de evocar a Estrela Azul.

– Será como num conto – diz meu querido amigo.

– Como num conto de Gabriel García Márquez – digo.

– Em Barranquilha? – Fernando Canto pergunta.

– Não! – respondo. – Em Macapá, mesmo, num conto de Gabriel García Márquez.

De repente, sinto o perfume das rosas.

– Gabo é como um velho amigo com quem eu gostaria de ter convivido – disse. Fernando Canto está atento. – Conheço-o demais sem nunca o ter visto. Mas conheço-o apenas na dimensão da poesia, não como conheço a ti – disse ao poeta. – Isso ocorre também com meu pai e com Ernest Hemingway. Ah! Meu pai era bonito e não tinha medo! Ele me contou histórias maravilhosas... Vejo-o em sonhos e sinto sua presença. Gostaria de bater papo com ele, agora que me sinto maduro.

– E Hemingway? – Fernando Canto pergunta.

– Todos os anos, envio para a Academia Espiritual da Seicho-No-Ie, na cidade de Ibiúna, em São Paulo, pedidos de oração para mortos queridos, entre os quais Papa Hemingway. Os mortos recebem oração o ano todo. Saiba, Fernando, que, para os mortos, oração é luz, luz que conduz à harmonia cósmica, que é Deus. Pois bem, no primeiro ano que enviei o nome de Papa para Ibiúna sonhei com ele. Encontrava-me em um teatro que me lembra o interior do antigo Cine Palácio, na Avenida Presidente Vargas, em Belém. Papa sentara-se entre duas pessoas na platéia superior. Seus cabelos estavam completamente brancos e ele parecia muito magro e com aquela debilidade das pessoas muito velhas, embora tivesse apenas 61 anos. Logo depois o vi no palco. Várias pessoas o ladeavam. Era o jovem Hemingway, trajando seu humilde terno preto dos tempos de Paris. De repente ele desceu do palco e passou por mim, se voltou e me olhou nos olhos. Obrigado! Disse-me, em silêncio.

Fernando Canto pede novas Cerpinhas e novas taças, e me serve a enevoada cerveja paraense, a mais deliciosa do mundo. É uma noite mágica. Todas as estrelas da galáxia se aglomeram no céu de Macapá, os jasmineiros enlouquecem e as mulheres ficam ainda mais bonitas.

– Isnard! – Fernando Canto grita. O poeta Isnard Brandão Lima Filho, trajando linho branco, aproxima-se sorrindo. Logo depois chega o pintor Olivar Cunha. De um instante para outro nos reunimos em torno de várias mesas, agora também com Alcinéa, Hemingway, Gabo e meu pai. Ganhei um sorriso da Savina. Lá está Antoine de Saint-Exupéry, sentado à mesa pouco distante de mim. Francisco, meu irmão, me abraça. Conserva a mesma beleza e imortalidade de sempre. João Cunha acaba de chegar e me beija na testa. Mamãe me dá um abraço redentor. É a mulher mais maravilhosa, linda e forte que conheço. Linda, minha irmã, também está lá. Recebo beijos da Josiane e da Iasmim. De repente, todos estão lá, mortos e vivos, ofertando rosas que não acabam nunca.