sexta-feira, 25 de março de 2016

CONTO/Eu não posso perder o embalo

Quando cheguei estava só a empregada, que a Galinha Gorda chama de governanta  o mesmo pedantismo daquele veado. – Fora a uma seresta. Pus-me a ver televisão. Um filmaço: O Dom da Fúria, com Robert Duval. Terminado o filme, desliguei o aparelho, preparei um café instantâneo, fumegante, e fiquei esperando a boceta. Chovia de manhã, à tarde e ainda à noite. Havia mofo na minha alma. Cidade infernal! Mas qual a cidade que presta quando estamos sem trabalho? Lembrei-me do último: teria de cuidar de um matagal, a que aquele veado insistia em chamar de jardim. O sujeito era ridículo. Comia num desses restaurantes infernais de macrobiótica. Tinha o rosto bexiguento assustador de tanto mastigar 40 vezes cada garfada de arroz. Quis que eu virasse também ruminante, mas a governanta dele fritava enormes bifes de alcatra, que eu comia vorazmente com feijão e arroz, e tomava depois um copo de coalhada gelada que ela preparava para mim. Parece que com a besteira do masca-masca o boçal pretendia virar santo. Bem, o negócio não durou muito tempo. O imbecil tinha umas amigas que viviam de olho na grana dele. Um dia me encontrou engatado no cu da Galinha Gorda. Demitiu-me na hora. Acontece que a desfrutável quis continuar a farra e comecei a frequentar seu apartamento. Chegou às 5 horas. Estava farta de garotões e passou por mim dizendo que ia tomar banho e se deitar. Tirei meu cinto de couro e dei umas lambadas na vaca. Ela fez um alarido assustador e compreendi que a boa vida, ali, acabara-se. Desci. Seria uma segunda-feira de sol brilhante. Caminhei até o Ver-O-Peso. Apreciei as frutas, aspirei o cheiro dos peixes, comprei uma sólida piramutaba e fui para casa.


EU NÃO POSSO PERDER O EMBALO integra o livro NA BOCA DO JACARÉ (Ler Editora/Libri Editorial, Brasília, 2013, 153 páginas)  Novela e contos ambientados em Belém do Pará e na ilha de Marajó.

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