terça-feira, 28 de novembro de 2017

Os ETs estão entre nós

No Programa do Jô, Jorge Bessa falou também 
 sobre Medicina Tradicional Chinesa

RAY CUNHA

BRASÍLIA, 29 DE NOVEMBRO DE 2017 – Provavelmente o livro mais importante publicado em 2017 no Brasil foi lançado no invisível mercado editorial brasiliense, no dia 14 de setembro, em um restaurante da capital, pela nanica annabel lee, de Brasília: Os discos voadores da Alemanha – Extraterrestres na Segunda Guerra Mundial, de um dos mais brilhantes intelectuais brasileiros: Jorge Bessa.

Bessa, paraense de Belém, economista, psicanalista e acupunturista, foi chefe da Divisão de Contra-Espionagem e Coordenador-Geral de Contra-Inteligência do Estado brasileiro. Participou de missões de Inteligência no exterior, principalmente na extinta União Soviética, e atuou na área de ensino de inteligência e relações internacionais em organizações civis e militares do país, autor de ensaios que vão de Medicina Tradicional Chinesa à presença de ETs entre nós, passando pela história da criação da raça humana.

Os discos voadores da Alemanha – Extraterrestres na Segunda Guerra Mundial vai muito além do título. Trata-se do mapeamento dos registros públicos e sigilosos da presença entre nós de seres de outros planetas, bons ou maus, e sempre mais adiantados tecnologicamente. Bessa explica por que eles não nos atacam em massa ou não se apresentam ao mundo, e o que querem. É o tipo do livro que a gente pega e lê de uma assentada. Quando os americanos souberem dele, lançarão imediatamente nos Estados Unidos.

Em 1977, quando OVNIs começaram a aparecer na Baía do Sol, próximo de Belém, eu trabalhava no extinto jornal O Estado do Pará, que fez uma bela cobertura do acontecimento. Jorge Bessa, então oficial de Inteligência do então SNI, também estava lá, juntamente com o capitão Uyrangê Bolivar Soares Nogueira de Hollanda Lima, que chefiava a Operação Prato.

Em abril de 2016, Bessa lançou Discos Voadores na Amazônia – A Operação Prato, pela Editora do Conhecimento. Em entrevista para a Rede Brasileira de Pesquisas Ufológicas, o pesquisador Edison Boaventura Júnior conversou com o escritor, que falou sobre a Operação Prato. Essa entrevista é indicativa do conhecimento de Bessa sobre ufologia, e uma pista do que o leitor devorará em Os discos voadores da Alemanha – Extraterrestres na Segunda Guerra Mundial. Vamos à entrevista:

Edison Boaventura Jr – Como escritor de vários livros e ex-oficial da Inteligência do extinto SNI, o senhor é o primeiro a vir a público admitindo em sua recente obra que participou como coadjuvante na Operação Prato, coordenada pela Aeronáutica. Qual foi a sua motivação para escrever o livro Discos Voadores na Amazônia – A Operação Prato?

Jorge Bessa – Em primeiro lugar, porque muitas pessoas ligadas à ufologia procuravam-me entrevistar para ter minha opinião sobre os fatos, uma vez que eu tinha participado como oficial de Inteligência. Eu sempre dizia que não tinha quase nada a acrescentar ao que foi dito pelo coronel Hollanda, mas, dado a insistência de alguns, resolvi que seria melhor colocar tudo em um livro.

O Segundo motivo foi a observação de que muitas obras e trabalhos sobre ufologia não davam nenhuma importância ao aspecto espiritual da questão. Ora, se o Velho Testamento e outros livros religiosos de diversas outras culturas religiosas antigas fazem referências aos OVNIs, e os resultados das pesquisas mais recentes sobre a civilização suméria falam de seres do espaço que criaram as religiões e mesmo aprimoraram a espécie humana, achei por bem ligar os dois assuntos e apresentá-los em um livro.

Edison Boaventura Jr – Os capítulos de sua obra estão muito ricos em informação ufológica e abordam outros aspectos também e até a questão da ufologia e a espiritualidade. Qual é a principal mensagem do seu livro?

Jorge Bessa – Creio que a humanidade atingiu, em um prazo de 50 anos, um nível de desenvolvimento técnico-científico que não aconteceu ao longo dos últimos 4 mil anos. No entanto, no que diz respeito à realidade do espírito e do universo que o cerca, o homem encontra-se aprisionado em um paradigma newtoniano-cartesiano que o impede de raciocinar e pesquisar além da matéria. No campo religioso a prevalência desse paradigma e a separação entre ciência e religião o torna prisioneiro da pregação irresponsável e infantil de líderes religiosos inescrupulosos e retrógrados, que engordam suas contas bancárias com o dinheiro extorquido dos pobres fiéis, que ainda pagam para obter um pedacinho do céu ou para ver um deus iracundo praticando prodígios de toda ordem.

Portanto, é chegada a hora de as pessoas abandonarem as crenças infantis e se prepararem para esse importante momento de transição planetária que estamos vivendo, e no qual o principado do espírito imortal deve ser difundido. Os extraterrestres – os deuses dos mitos – e os discos voadores que os transportam, fazem parte desse esforço, acostumando aos poucos as populações terrestres com a sua presença, para, em momento não muito distante, apresentarem-se publicamente e trazerem sua contribuição tecnológica e espiritual para nossa humanidade.

Edison Boaventura Jr – Qual foi a intenção de abordar a Espiritualidade atrelada à ufologia em seu livro?

Jorge Bessa – Sem acreditar na sobrevivência do espírito depois da morte, na sua permanente evolução em outros recantos do universo, e na ocorrência dos chamados eventos apocalípticos, fica difícil entender as visitas dos nossos irmãos das estrelas.

Edison Boaventura Jr – O senhor observou OVNIs na Baia do Sol durante as vigílias realizadas pelos integrantes do I Comar (Pará)? Conte-nos a sua experiência.

Jorge Bessa – Foi uma experiência única e inesquecível. Ao chegamos à Baia do Sol, cerca de quinze minutos para as 20 horas, assim que nos reunimos com o pessoal da Aeronáutica, uma imensa bola de luz, parecendo uma lua cheia bem próxima, pairou sobre nós, aparentemente para se exibir, como se as pessoas que a controlavam quisessem se apresentar para quem as procuravam. Esforcei-me por tentar um contato telepático, mas hoje creio que não tinha nenhuma condição de fazê-lo.

Depois de piscar por três vezes, o objeto disparou com grande velocidade, desaparecendo na direção do município de Vigia. O Hollanda acreditava que, de alguma forma, eles sabiam de nossa missão, coisa que não duvido.

Edison Boaventura Jr – O Coronel Filemon Menezes, chefe do extinto SNI em Belém – PA também participava das vigílias noturnas? Como era a sua interação com o capitão Uyrangê Hollanda e o sargento Flávio Costa? Vocês chegaram a fotografar ou filmar os objetos voadores luminosos avistados?

Jorge Bessa – O Filemon nunca participou de nenhuma vigília, pois à época não chefiava a Agência. Tive contato com o coronel Hollanda (à época capitão) em três oportunidades, facilitadas por um outro companheiro do SNI, que tinha sido seu colega na Academia da Aeronáutica, o dr. Maury Eudo Barros Pereira, e que também participou na primeira missão. Tínhamos também a companhia de um capitão da Polícia Militar, que à época estava servindo no SNI, e que realizou as filmagens e fotografias, sendo todo material remetido para a Agência Central, em Brasília. Quanto aos sargentos com os quais fizemos contato, não lembro os nomes.

Edison Boaventura Jr – Antes de sua participação como testemunha desses fenômenos ufológicos, durante a Operação Prato, houve algum interesse seu por ufologia ou vivenciou algum avistamento anterior?

Jorge Bessa – Havia o interesse pelo assunto, mas nem sonhava com avistamentos. Durante o curso das operações, os avistamentos tornaram-se visíveis para qualquer um, e tanto em Belém como nos municípios vizinhos, tornaram-se comuns. Por ocasião das aparições, apresentei-me ao chefe da Agência como voluntário, haja vista meu interesse pessoal pelo assunto.

Edison Boaventura Jr – Qual era a relação do extinto SNI (hoje Abin) e o fenômeno OVNI? Seriam esses aparelhos voadores uma ameaça à segurança nacional?

Jorge Bessa – Na verdade não houve essa preocupação com a segurança nacional. Nós insistimos com o chefe que deveríamos acompanhar o fenômeno, pois Brasília poderia pedir alguma coisa e tínhamos que estar cientes do que se passava. Pareceu-me que a chefia não levou muito a sério a questão, até ver os filmes e possivelmente ter tratado do tema com o brigadeiro Protásio Lopes de Oliveira, comandante do 1º Comar e que assistiu aos filmes, ficando muito impressionado.

Edison Boaventura Jr – Os relatórios oficiais das investigações ufológicas que foram gerados por sua equipe eram remetidos para qual órgão governamental? Na sua opinião, a Abin coleta esse tipo de informação na atualidade? Que metodologia era utilizada na coleta de informações no ano de 1977 e hoje como são os procedimentos? O que mudou?

Jorge Bessa – Os relatórios produzidos foram enviados para a Agência Central, em Brasília/DF; parece que não despertaram muito interesse; a fenomenologia ufológica estava muito distante das preocupações da Inteligência naquela época, mais voltada para as questões relativas à expansão do movimento comunista e com os movimentos armados contra o regime. Também não havia nenhum setor encarregado desse tipo de assunto, que era acompanhado apenas pelos interessados no tema. Não havia nem determinação de acompanhamento, nem metodologia a empregar.

Esclareço que, quando assumi a chefia da Contra-Inteligência da então Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, apresentei ao general Alberto Cardoso, então ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional e que era o responsável pelo órgão de Inteligência, um documento mostrando a importância de se criar um setor encarregado do acompanhamento dos fenômenos ufológicos, pois os principais serviços de Inteligência do mundo já acompanhavam esse assunto. O general Cardoso autorizou, pedindo apenas que o setor não fosse incluído oficialmente no organograma do órgão. Além disso, me proporcionou contatos excelentes no campo militar, com oficiais generais que tinham experiência com o assunto.

O setor foi criado de forma muito simples em 1996, apenas com duas pessoas que gostavam do tema.  O trabalho inicial foi juntar todo material possível sobre o assunto – livros, jornais e revistas – organizando-o e classificando-o. Também procuramos estabelecer contatos com pessoas ligadas aos diferentes grupos ufológicos para juntarmos experiências e trocarmos experiências, além das organizações militares.

Ocorreu que, pouco tempo depois, por questões internas, pedi exoneração do cargo, e os que me substituíram se apressaram em extinguir o recém-criado setor, pois faziam muitas críticas à essa ideia, considerando-a uma grande besteira. Hoje, desconheço se o assunto voltou a despertar o interesse dos atuais chefes e analistas da Inteligência, mas acho pouco provável que isso tenha acontecido.

Edison Boaventura Jr – Qual foi a conclusão da sua equipe de Inteligência à respeito das luzes não identificadas que apareceram no estado do Pará e circunvizinhanças na década de 70? Qual era o objetivo desse fenômeno em relação às populações ribeirinhas?

Jorge Bessa – A conclusão óbvia é que, à semelhança do que acontecia em outra partes do mundo, o avanço tecnológico de voo que esses objetos demonstravam possuir indicava se tratar de artefatos extraterrestres, embora saibamos que os cientistas de Hitler e mesmo os norte-americanos estivessem desenvolvendo artefatos parecidos. Quanto aos objetivos dos alienígenas, várias hipóteses foram levantadas: levantamento geoestratégico, geoeconômico, população, recursos minerais, ambiente ecológico etc.,  mas nada de concreto poderíamos afirmar.

Edison Boaventura Jr – Quando o senhor criou o setor de investigação e análise de fenômenos ufológicos em 1996, qual era a dinâmica de trabalho e quando foram extintas as atividades do setor e por que? Para onde foram os documentos?

Jorge Bessa – Já respondi anteriormente sobre a dinâmica e a extinção do setor. Pelo que soube, todos os documentos teriam sido enviados ao Arquivo Nacional.

Edison Boaventura Jr – Muito obrigado pelos esclarecimentos e deixe agora as suas considerações finais.

Jorge Bessa – Agradeço pela gentileza da entrevista e aproveito para novamente alertar para a seriedade do momento que atravessamos, de encerramento de um ciclo cósmico para o planeta Terra, conhecido como Juízo Final ou Transição Planetária, conforme tenho abordado em meus livros: Decifrando as Profecias de Daniel, Decifrando as Profecias de João, O Aquecimento Global – Uma Visão Espiritualista, dentre outros.

Conforme preconizado por Jesus de Nazaré, considerado o governador espiritual do planeta Terra, no Final dos Tempos, ou Tempos Chegados, toda a verdade seria revelada. Nossa humanidade já atingiu um patamar de evolução que lhe habilita a passar de um mundo de provas e expiações para um mundo de regeneração, e entender melhor o que os profetas e videntes do passado queriam nos dizer, com palavras simples. Também a física quântica nos abre uma grande janela para a compreensão do mundo espiritual, dos universos paralelos e de toda uma fenomenologia que até recentemente ficava por conta do milagroso e maravilhoso.

Diversas obras de cunho espiritualistas vêm trazendo uma série de revelações sobre o passado de nosso planeta, e sobre a colaboração dos extraterrestres – os deuses do passado – no desenvolvimento do chamado Homo Sapiens. Também falam de seu retorno nesse momento atual de transição, para colaborar com a nossa humanidade nos momentos difíceis dessa transição, bem como na reconstrução do planeta após os grandes abalos geológicos causadas pelos eventos cósmicos que já haviam sido alertados por Jesus há mais de 2 mil anos, quando ditou a João Evangelista os pormenores que ficaram  registrados no Livro do Apocalipse.

Preparemo-nos para grandes revelações, sem temores religiosos infundados, ou com desesperos infantis, balizando-nos pela ciência, pela inteligência e pela intuição. Mas, a única forma de passarmos incólumes por isso ainda é a velha e sábia recomendação do “Amai-vos uns aos outros”.

sábado, 18 de novembro de 2017

Como o delegado Ricardo Larroyed, da Homicídios, também se tornou acupunturista


Segundo capítulo do romance de Ray Cunha, FOGO NO CORAÇÃO, trabalho de conclusão do curso de Medicina Tradicional Chinesa na Escola Nacional de Acupuntura (ENAc). FOGO NO CORAÇÃO está à venda na Amazon.com.br e no Clube de Autores.

O relógio despertou às 5 horas. Ricardo Larroyed desligou-o; o sabiá estava cantando. Ergueu-se da cama e olhou pela janela. Chovera. A madrugada quedava-se quieta como ave encharcada. Do seu quarto dava para ver as mangueiras à luz das luminárias públicas. Não dormira muito, pois deitara-se tarde. Levantou-se e foi ao banheiro; sentou-se no vaso e ficou lá um certo tempo. Habituara-se a urinar sentado quando ainda vivia com Mara. Levantou-se, acionou a descarga, lavou as mãos e o rosto, sacudiu água na boca e passou as mãos úmidas na cabeça. Era bastante calvo na frente e usava os cabelos aparados à máquina. Ajeitou o pijama, saiu do banheiro e se dirigiu à cozinha. Pôs água para ferver e preparou uma xícara média de Antonello Monardo, encorpado e sem açúcar. Excedera-se um pouco na noite anterior; devia ter tomado quase meia garrafa de Anísio Santiago. Dali da cozinha foi para a biblioteca. Herdara a casa de seu pai. Mais uma semelhança com seu sócio, Emanoel Vorcaro. Quando separara-se, Mara fora para o Rio, sua cidade natal e onde conhecera o novo marido, próspero empresário da área de alimentação, dono de três restaurantes na Cidade Maravilhosa. Ricardo sentia profunda gratidão por ela. Amigos de infância, começaram a namorar adolescentes. Naquela época, o talento, que não sabia ainda para quê, começava, de alguma forma, a agitá-lo, e ele não tinha o necessário direcionamento para canalizar aquela tremenda energia. Foi aí que Mara entrou, conduzindo-o, por circunstâncias que nunca lhe ficaram claras, aos cursos que Ricardo fizera. Casaram-se e logo depois sua missão se revelou com clareza solar. O gatilho que o levou a compreender sua missão deixara uma lembrança na sua barriga: uma cicatriz. Anos depois soube que tudo o que queria era seguir a carreira de policial. Três anos após seu casamento com Mara, ela se queixou de que não conseguia gozar com o travesseiro, desejou-lhe felicidade na polícia e se mandou para o Rio. Chefe de cozinha competente, conquistou não só a clientela do seu futuro marido, como principalmente a ele mesmo. No início, a dor da perda queria estrangular o coração de Larroyed; mas que policial seria se não conseguisse ignorar agulhadas em nervos expostos? O caso é que policiais não podem ter nervos expostos. Sua trama nervosa tem que estar agasalhada em meridianos de liga de aço e nióbio. Mas ainda pensou nela durante anos, até conhecer Greta Cantanhede.
Enquanto se vestia, Ricardo Larroyed olhava pela janela as mangueiras da rua. Morava sozinho, no coração do Cruzeiro Velho. Adorava mangueiras, e, naturalmente, manga era sua fruta predileta, daí que ficava possesso quando via, impotente, pessoas açoitando mangueiras, os frutos ainda verdes. As mangueiras públicas sempre o deixavam com um sentimento ambíguo, de prazer e revolta: prazer porque as amava, e de revolta porque estavam sempre podadas só de um lado, por causa da fiação elétrica, “que deveria estar debaixo do solo”.
Ricardo Larroyed era um espanto. Delegado especial da Polícia Civil, lotado na Coordenação de Repressão a Homicídios, fizera graduação simultânea em direito e medicina, com pós-graduação em medicina legal, além da graduação em programação em informática. Fora também alpinista, e quase perdera o joelho direito tentando escalar o Pico da Neblina, o que jamais conseguiu. Um ortopedista, amigo da família, lhe deu um conselho:
– Procura um acupunturista, agora! – e lhe forneceu o número de telefone do dr. Emanoel Vorcaro.
Não só foi curado, como fez o curso de medicina tradicional chinesa no Instituto Holístico e se tornou professor da instituição, além de fazer uma amizade tão sólida com Emanoel Vorcaro a ponto de em determinado momento passarem a almoçar juntos todo sábado, a menos, é claro, que motivos de força maior os impedissem. Acabaram abrindo a Clínica de Terapias Holísticas. Tanto a amizade quanto a sociedade eram inabaláveis, pois alicerçavam-se na empatia, na medicina chinesa e no mandarim. Estudioso de antigas confrarias, Larroyed lia em pelo menos doze idiomas, entre os quais o mandarim, e até línguas mortas, como latim e aramaico. Media 1,90 metro e pesava 90 quilos e fora pugilista amador na juventude. Aos 41 anos, evocava um boa-vida, com o devido ar cínico. Nada mais enganoso, pois cultivava disciplina espartana. Ao levantar-se e ao deitar-se fazia religiosamente a Meditação Shinsokan, criada pelo filósofo japonês Masaharu Taniguchi, fundador da Seicho-No-Ie, e vivia no que chamava de “a eternidade do agora”, filosofia que empregava ao extremo nos pegas amorosos com sua gata, a oncologista e urologista Greta Cantanhede, “a negra mais bonita do planeta, incluindo-se, para ficar mesmo redundante, a África!”
Começaram a namorar a partir de um check-up. Ricardo estava com sintomas de herpes simples no pênis e ainda não sabia o que era.
– Você já viu todo tipo de pinto, mas se apaixonou por mim quando viu o pinto mais bonito do mundo – dizia-lhe, rindo.
– Deixas de ser besta, rapaz, para a tua altura és quase aleijado; eu me apaixonei porque desde que te vi senti um cataclismo! – ela lhe respondia, no seu sotaque macapaense, rindo também com seus olhos grandes e escancarados, brilhando como uma prece, negros como o azul do céu ao anoitecer em julho em Macapá, e o beijava como na primeira vez. Era dessa parte que ele gostava.
Greta era filha de uma descendente de escravos usados na construção da Fortaleza de São José de Macapá, dona Joana, e de um pesquisador italiano, ginecologista e obstetra, que foi à Amazônia para estudar as parteiras e as condições em que nasciam ribeirinhos e índios. Era tão belo e tinha os olhos tão azuis que as mulheres, inclusive casadas, chegavam a se ajoelhar aos seus pés suplicando que as possuíssem. Até chegar em dona Joana, uma pérola autêntica, uma dessas mulheres que encerram a redenção de todos os homens. Aí terminou a pesquisa. O dr. Catanhede voltou casado para Roma, mas os romanos não aceitaram dona Joana; então, o casal mudou-se para Macapá. Greta tinha 17 anos quando o dr. Cantanhede foi chamado ao Ministério da Saúde, em Brasília, para criar e assumir o Departamento Nacional de Ginecologia e Obstetrícia. Greta já estava terminando a faculdade de medicina da Universidade Católica de Brasília quando o dr. Cantanhede foi diagnosticado com câncer na próstata. Foi então que a planejada residência em ginecologia e obstetrícia mudou para oncologia, além de uma especialização em urologia, na esperança de salvar o pai.
– Deus escreve por linhas tortas, minha filha! – foram as últimas palavras do cientista. Greta se tornou uma referência, uma luz para os pacientes acometidos de câncer ou das doenças horripilantes que se alojam no sexo masculino.
Dona Joana morreu na semana seguinte, simplesmente porque queria encontrar-se com seu querido no mundo espiritual. Morreu como um passarinho, que tomba de um momento para outro. Então Greta fez mais uma especialização: acolhimento de pacientes e familiares, também conhecido como paliativismo. Foi quando conheceu Ricardo Larroyed; o policial internara sua mãe, viúva, no Hospital Sírio-Libanês, e foram acolhidos pela dra. Greta Cantanhede. A gota d’água foi o herpes simples, e deu-se a magia das almas gêmeas.
            Uma hora depois Ricardo Larroyed entrou na sua sala na Coordenação de Repressão a Homicídios, na sede da Polícia Civil, Parque da Cidade, defronte para o Sudoeste, bairro de Brasília. Recebera uma demanda nova e começaria naquela manhã a inteirar-se do caso. Três modelos foram assassinadas ao longo daquele ano e havia indícios de ligação entre os crimes. Ricardo começou a ler o primeiro caso, ocorrido em janeiro. Patrícia Montenegro, 21 anos, de Belém do Pará, hospedada na suíte 1.134, décimo primeiro andar do Grande Hotel, foi encontrada morta, por volta das 6h30 do dia 7 de janeiro, no jardim do cinco estrelas, no Setor Hoteleiro Sul, coração de Brasília. O caso foi investigado pela Primeira Delegacia de Polícia. Havia uma foto de corpo inteiro de Patrícia Montenegro. Com 1,73 de altura, 60 quilos de peso, morena de olhos verdes, fora eleita Musa Verão de Mosqueiro 2014, e iria concorrer ao Miss Pará no concurso Beleza Brasil. Sonhava com o Miss Brasil 2015. Por volta das 21 horas do dia 6 de janeiro, Patrícia ligou para sua irmã ao telefone celular. Estava chorosa e pediu à irmã que guardasse as fotos de sua carreira de modelo. Às 5 horas do dia seguinte, Patrícia voltou a telefonar para casa e pediu à sua mãe que viesse buscá-la. Às 6h30, o corpo foi encontrado num pequeno jardim na frente do hotel, na direção do estacionamento de táxi no outro lado da rua, de onde ouviram gritos e o som da queda. Patrícia Montenegro morava no Sudoeste há um mês e fazia o famoso curso de modelo da qualificada agência Modelo Cerrado. Em torno das 6 horas do dia 7 de janeiro, o porteiro da noite teria visto um homem magro, de terno, panamá e óculos escuros tomar um dos elevadores, descendo no décimo primeiro andar, o que foi confirmado por uma camareira; o homem foi visto saindo meia hora depois.
As outras duas modelos eram da mesma agência. Em fevereiro, Roberta de Castro e Silva foi encontrada num dos banheiros do estacionamento do primeiro subsolo do Grande Hotel. Recebera uma punhalada no baço; coisa de cirurgião, e uma no púbis, perfurando o útero. Também não havia sinal de esperma. O terceiro caso ocorreu no início de dezembro. Dessa vez a estudante e modelo Gabriela Costa Médici fora encontrada na sua kitnet na Asa Sul, onde morava sozinha. Era ruiva e estava nua na cama, os cabelos espalhados em torno de um corpo que mesmo morto ainda exalava luz, especialmente os pelos pubianos, salpicados de sangue. Não havia indício de esperma, mas seu útero fora perfurado por punhal. Estava entupida de rupinol, o boa noite Cinderela, e morrera devido à hemorragia do ferimento no útero; sangrara até morrer, anestesiada pela grande quantidade de rupinol que ingerira.
Ricardo Larroyed pegou o telefone e ligou para o delegado Mariano Braga, da Primeira DP, que investigara os três casos. Ele estava lá. Identificou-se ao agente que atendera ao telefone e esperou um pouco.
– Delegado Mariano Braga – ouviu do outro lado da linha.
– Ricardo Larroyed, da Homicídios. Recebi o caso de três modelos assassinadas, uma das quais parece suicídio, e os três casos foram investigados por você. As modelos são Patrícia Montenegro, Roberta de Castro e Silva e Gabriela Costa Médici. Queria conversar com você sobre isso.
O delegado Mariano Braga pensou um pouco.
– Acho que o conheço da academia – disse. – Fiz o máximo que pude nos três casos, como você pode ver nos relatórios.
– De qualquer modo, se não se importa, eu gostaria de conversar com você; quem sabe não encontro mais alguma coisa que ligue os três casos? As três frequentavam a agência Modelo Cerrado, que fica no Grande Hotel.
– Poderemos conversar amanhã, o que lhe parece? – propôs o delegado Mariano Braga.
– Ótimo! Aí ou fora daí?
– Você gosta de café?
– Sou aficionado por café!
– Então vamos nos encontrar no Café Picasso, que fica no térreo do Grande Hotel? Às 19 horas? É lá que gosto de tomar um relaxante, e aí aproveitaremos para dar uma olhada no Grande Hotel.
– Fechado!
Ricardo Larroyed ligou para a Modelo Cerrado; identificou-se e pediu para falar com o diretor. Era diretora, Maíra da Matta. Marcaram para as 17 horas, na agência. Pegou o paletó e saiu. Pouco depois estacionava sua Chevrolet Blazer negra, modelo 2014, na Superquadra 410 Sul, por trás do restaurante Bali. Conseguiu uma mesa pequena e pediu tucunaré frito e arroz com espinafre. Frequentava o Bali por dois pratos: tucunaré e yakisoba, “os melhores de Brasília”. Gostava muito também da banana caramelada, mas raramente a pedia, pois um tucunaré com arroz, ou a tigela de yakisoba, que comia com gosto, não deixavam espaço para a banana.
Filho de um clínico médico carioca e que viveu durante dez anos na China, o dr. Reinaldo Larroyed, transferido do Rio para Brasília, onde conheceu a paraense Karina Monarcha, promotora pública, Ricardo Monarcha Larroyed se tornou apreciador da Amazônia Azul e dos rios da Hileia, e, naturalmente, de peixes e frutos do mar. Costumava ir a Belém duas vezes por ano, repetindo o que faziam seus pais. Ia em julho, auge do verão amazônico, quando as praias fluviais do subcontinente surgem em toda a sua exuberância, e durante o Círio de Nossa Senhora de Nazaré, em outubro. Também a família ia sempre que podia ao Rio e a Cabo Frio, e Ricardo repetia esse périplo, ano após ano. Outros lugares que lhe interessavam, e aonde ia de vez em quando, eram Hong Kong, Pequim, Tóquio, a Europa de um modo geral, o Caribe e os Estados Unidos, especialmente Nova Orleans e Miami. Em outras palavras, o planeta inteiro lhe despertava apetite. Era daquele tipo que curte tudo, e que pode trabalhar o dia inteiro, dia após dia, sem sentir-se cansado, e Greta não lhe dava descanso. Sabia, contudo, de onde vinha aquela energia. Seu pai fora uma espécie de missionário, pois fez da sua carreira médica uma missão; nunca deixava de atender um paciente, mesmo sabendo que ele não poderia pagá-lo, e fazia trabalho voluntário num centro de triagem no Rio, por onde passava todo tipo de derrotados: moradores de rua, vagabundos, alcoólatras, drogados de todas as espécies, suicidas, assassinos se escondendo, loucos varridos. Atendia cada um, não importando seu fedor, com a mesma atenção, e tinha sempre, na manga, uma palavra de conforto, um elogio, capaz de extrair luz do meio da podridão. Podia atender, ao longo do dia que reservava na semana para trabalhar ali, 10, 40, 70 pessoas, 100, se fosse preciso, e no fim mostrava a mesma energia inicial, o que deixava seus colegas intrigados e ciumentos. Quanto à dra. Karina Monarcha, quando investigava e fazia acusação a um bandido, dormia muito pouco, mas jamais Ricardo vira-a cochilando. Pensando bem, ele não se lembrava de ter contraído sequer um resfriado. Dava-se conta agora disso. Os únicos problemas de que se lembrava foram o joelho, na sua tentativa frustrada de escalar o Pico da Neblina (“Poderia ter escolhido o Pão de Açúcar, mas, não, fui logo ao Pico da Neblina!”), e herpes simples, “provavelmente contraída durante o encontro fortuito com uma loira escultural, e casada, num restaurante chique do Lago Sul, e que me inoculou uma carga de vírus capaz de atravessar a parede de aço e nióbio dos meus meridianos neuronais” – como dizia para si mesmo. Havia também a cicatriz na barriga, embora não fosse proveniente de doença. E depois, a autoacupuntura, a alimentação baseada em princípios da medicina tradicional chinesa, e a meditação, produziram-lhe um efeito paradoxal: ao mesmo tempo em que se sentia rijo como liga de aço e nióbio, experimentava a flexibilidade de um galho de goiabeira. Só perdia o humor quando se deparava com casos de discriminação, étnica, social, geográfica, de peso corporal, de gênero, de escolha sexual, financeira, qualquer tipo de discriminação. Para ele, discriminação era o ponto mais baixa da imbecilidade humana. Também sentia horror a ladrões. Mas o que o fez decidir-se a ser policial especializado em homicídios foi um caso que ainda o visitava em pesadelos, embora cada vez mais esparsos.
            Na época, era um fedelho, mas por ser alto, bem apessoado e intelectualmente brilhante, atraía as mulheres, e foi assim que se tornou confidente de uma professora que tivera no Elefante Branco. Ela apresentava olheiras e tristeza. Ele podia sentir isso. Até que um dia, depois da aula, foram para um motel no Núcleo Bandeirante.
            – Nunca tinha sentido o que senti hoje – ela disse. – Na noite de núpcias, quando meu marido pressentiu que eu ia... gozar, ele saiu de cima de mim e me olhou pela primeira vez com aquele olhar assassino e me bateu, bateu na boca, e depois me deu outros tapas até eu suplicar que não me batesse mais, e depois fez todas as coisas, torpes, que ele vem fazendo desde então. A minha lua de mel foi assim, uma lua de fel. Ele me bate quase todos os dias, e faz coisas repugnantes comigo. Quando o meu pai era vivo, não tinha coragem de contar para ele, porque era ele que batia em mim, antes de eu casar, e minha mãe fazia tudo o que meu pai mandasse ela fazer. A sorte é que, quando nos casamos, eu já era professora, embora o meu salário seja todo entregue a ele, apesar de que ele é um empresário cheio da grana. Já pensei em matá-lo! Mas como? – Ela o abraçou. Era uma mulher ainda bonita, apesar das marcas roxas pelo corpo todo, especialmente as de quem abandona a si mesma.
            Aquilo durou todo um trimestre, até o dia em que ela garantiu que seu marido viajara e que eles podiam ir à casa dela, no Lago Sul, naquele domingo, pois não haveria nenhum empregado. No domingo, Ricardo estava lá. Assim que ele chegou, no fim da manhã, foram imediatamente para a alcova. O rapaz já ia mergulhar no acme quando recebeu a cacetada na nuca. Acordou solidamente amarrado numa cadeira e com uma fita na boca.
            – Primeiro vou matar essa vagabunda e depois extirpar teus bagos – disse o sujeito à sua frente, empunhando uma faca de caça.
            Ricardo olhou para a cama e a viu. Estava fortemente amarrada e com uma fita na boca, os olhos arregalados, aterrorizados. Olhou novamente para o sujeito. Era um cara bombado, parecia mais jovem do que a esposa, e bem vestido.
            – Planejei tudo, sujeitinho escroto; ela pensou que eu tinha viajado mesmo. Nunca viajo. Segui vocês dois até me certificar que essa vagabunda dá até para cachorro – e aplicou a primeira facada na mulher, na vagina.
            Ricardo ergueu a cadeira e se arremessou contra o tipo, conseguindo atingi-lo com a cabeça no queixo; quando a cadeira caiu quebrou uma perna, afrouxando as amarras. Entupido de adrenalina, o rapaz livrou-se das amarras frouxas e da fita num urro leonino de agonia e partiu para cima do sujeito, que havia perdido a faca. Mas o cara sabia bater e o atingiu na boca do estômago. Ricardo dobrou-se em dois e quando recobrava-se levou um coice na boca. Sem dúvida, aquele empresário não sabia só ganhar dinheiro e bater na esposa; batia, e muito bem, nos fedelhos que ela levava para a cama. Um soco na nuca quase o pôs a nocaute pela segunda vez naquela manhã, mas a dor aguda que sentiu no ventre o acordou de vez. Pôs a mão em cima do ferimento onde fora esfaqueado e olhou para a cama. O corno estava degolando a mulher. Dessa vez o urro saiu-lhe da alma; voou para cima do sujeito e só parou de socá-lo quando ele desfaleceu. Na cama, a cena dantesca: a cabeça praticamente separada do corpo.
            O caso foi parar na Delegacia da Mulher e depois no Júri Popular, onde o assassino pegou pena máxima, mas não cumpriu sequer metade disso, pois encontrou na cadeia um sujeito ainda mais violento do que ele, e que não suportava o convívio com quem bate em mulher; se a mata, então, é porque já portava passagem só de ida para o inferno. Durante os processos policial e judicial, Ricardo tomou contato com o mundo dos assassinos, inclusive comprou um livro sobre a mente dos psicopatas e soube, então, que estava destinado a identificar e afastar do convívio da sociedade todos aqueles que atentam contra a obra de Deus e que atravessassem seu caminho.
            Do restaurante, foi fazer uma pesquisa nos arquivos da Polícia Civil e dar alguns telefonemas. Às 17 horas chegou à agência de modelos, que ocupava várias salas naquele misto de shopping, centro empresarial e hotel no Setor Hoteleiro Sul, o Grande Hotel, ponto de encontro de mariposas esculturais. Foi introduzido numa sala de espera onde havia pelo menos meia dúzia de garotas, todas lindas, conversando. Uma senhora de avental perguntou se ele aceitaria água e café. Sim. A água estava fresquinha e o café era um ótimo blend. Não demorou quase nada para que Ricardo Larroyed fosse chamado. Quando entrou na sala da senhora Maíra da Matta não havia ninguém. Sentou-se num sofá, de onde dava para ver a Torre de TV. Não demorou muito a diretora surgiu de uma entrada atrás da ampla escrivaninha. Ricardo se levantou para cumprimentá-la. A mulher lembrava uma ave de rapina e sua voz era aguda, quase uma sequência de piados.
             – Conforme eu disse à senhora ao telefone, a morte misteriosa de três modelos, e todas elas desta agência, nos levou a desconfiar que pode haver um assassino comum – disse o policial.
            – E o senhor acha que o assassino trabalha aqui, na agência! – ela exclamou.
            – Quando a senhora soube da morte das três modelos não achou estranho que três se foram só neste ano, e todas assassinadas? – Ricardo perguntou-lhe.
– Sim, achei. Li tudo sobre a investigação de cada caso, além de conversar longamente com familiares delas. A Patrícia Montenegro se envolveu com o professor de dança da nossa academia, o professor Sebastião Estrela, o que levou, inclusive, o noivo de Patrícia Montenegro a terminar com ela. Sei disso porque a mãe dela, que me ligava toda semana, estava preocupada e me falou sobre tudo isso, pormenorizadamente, em longo telefonema. O namorado dela era muito ciumento, e foi por uma besteira que ele pôs fim ao noivado; isso deixou a Patrícia deprimida. Parece que ela o amava e sofria por tê-lo perdido por causa do professor Sebastião Estrela, com quem havia apenas flertado, como de resto nos dois outros casos.
– O professor se envolveu também com as outras duas modelos mortas? – o policial perguntou.
– Como eu disse, foram apenas flertes. O delegado que investigou todos os casos esquadrinhou a vida do professor, a ponto de Sebastião Estrela ter ficado com esgotamento nervoso. Mas não encontrou nada que pudesse comprometê-lo. Em todos os casos ele tinha álibi, que inclusive eu mesma chequei. Pessoalmente, estou certa de que o flerte entre o professor e minhas três meninas, e a morte delas, foi coincidência, uma infeliz coincidência. Mas voltando à Patrícia Montenegro, o quadro psicológico dela se agravou com o anúncio do casamento do ex-noivo, logo depois do rompimento deles. Parecia até que ele só estava esperando um motivo para terminar com ela. Isso a deixou agressiva, nervosa, quando, normalmente, era um doce de pessoa. Sabe, delegado, tenho o dom de atrair pessoas com necessidade de desabafar, e também de as ouvir e lhes dar conselhos. O que já ouvi das minhas meninas o senhor nem imagina; seria material farto para Honoré de Balzac. Porém o mais intrigante é que as três tinham mioma, e eram tratadas com acupuntura – a mulher lembrava um falcão, e seus olhos pareciam ocupar toda a sala.
O policial quase cai da cadeira, uma cadeira sólida, construída por marceneiro; ajeitou-se.
            – As três eram tratadas com acupuntura?         Então o assassino poderá ser acupunturista? – balbuciou.
            – Cabe ao senhor comprovar isso. Quanto a mim, vou lhe dar todo o apoio possível para que encontre esse psicopata. Uma das meninas, Gabriela Costa Médici, a última que foi morta, era filha de uma amiga minha, do Rio Grande do Sul, a quem eu devo muito; uma pessoa altruísta. Nunca a vi fazendo mal a alguém; minha amiga está sofrendo muito! Muito! Mas que não seja por isso; eram moças muito jovens, que estavam começando a vida, cheias de sonhos, e também de ilusões, como é comum nessa idade, sobretudo na profissão que elas haviam abraçado.
            – Naturalmente a senhora investigou para ver se há alguém, aqui na agência, que seja versado em acupuntura?
– Sim! Não há nenhum acupunturista aqui.
– Precisamos descobrir por quem as três eram tratadas.
            – A Patrícia Montenegro tratava-se em Belém, mas as duas daqui, eu sei onde foram tratadas – disse a mulher.
            – Onde? – Ricardo perguntou, ansioso.
– No Instituto Holístico.
Pela segunda vez Ricardo Larroyed quase cai da cadeira. Olhou para o relógio. Às 19 horas teria uma reunião de professores no Instituto Holístico.
– Gostaria de conversar com o professor Sebastião Estrela – disse à senhora Maíra da Matta.
– Pode ser amanhã à tarde, por volta das 16 horas? – os cabelos tingidos de negro, a blusa também negra e a saia branca da diretora a deixavam ainda mais parecida a um falcão-peregrino. – O senhor poderá conversar com ele aqui mesmo, na minha sala.
– Combinado! – ele disse, levantando-se.
Pouco depois encontrou vaga na 203 Sul, distante uns 500 metros da Fundação Holística, um prédio de dois andares e subsolo no Bloco A. Eram ainda 18 horas, o que lhe dava uma hora para dar uma olhada nos arquivos do ambulatório. A secretária-executiva da escola, dona Maria das Dores Craveiro, estava na portaria. Seu nome caía-lhe como uma luva. Era uma mulher empertigada e encarangada; sentia dores nas mãos, como se fossem transpassadas por cravos. Fora tratada por todos os professores, mas só encontrava alívio nas mãos do professor Bartolomeu Amado, o Bafo de Onça.
A Fundação Holística fora criada pelo professor Marcelo Quintela, um boa-vida de família endinheirada. Tinha 21 anos quando começou a perder massa muscular na coxa esquerda, após um acidente automobilístico. Nenhum tratamento estava dando certo quando foi encaminhado para um velho médico chinês, em São Paulo. Logo na primeira sessão o chinês deu uma espécie de beliscão na coxa do paciente e a perna deu um salto. Em dez sessões a perda de massa muscular cessou. Isso deixou o jovem empresário do ramo automobilístico tão empolgado que ele resolveu fazer o curso de medicina tradicional chinesa, com especialização na China. Ao assistir a uma conferência de Giovanni Maciocia em Londres, decidiu criar uma escola em Brasília. Ricardo Larroyed, que o conhecia desde o Elefante Branco, lembrou-se do dia em que foi convidado para lecionar na Fundação Holística. Naquele dia, foram almoçar num daqueles restaurantes da 404 Sul. Marcelo Quintela ainda não se convencera de que Ricardo Larroyed aceitara lecionar no Instituto Holístico, e puxava assunto; então, começou a contar uma história.
– Certo dia dos anos de 1960, o jornalista e escritor Joy Hyams almoçava com Bruce Lee num restaurante chinês no centro de Los Angeles. Não era sempre que Hyams tinha esse privilégio, de modo que aproveitou a oportunidade para queixar-se a Bruce, confessando-lhe que andava desanimado, sentindo-se velho, embora só tivesse 45 anos. Achava-se rígido demais para o Jeet Kune Do, a arte marcial criada por Bruce.
– Você jamais aprenderá nada de novo se não estiver disposto a aceitar-se com suas limitações – disse-lhe Bruce. – Você precisa aceitar o fato de que é capaz em algumas coisas e limitado em outras, e que precisa desenvolver suas aptidões.
Hyams retrucou que aos 35 anos podia facilmente aplicar um golpe de pé acima de sua cabeça. Bruce fez uma pausa na mastigação e olhou para Hyams.
– Isso foi há dez anos – disse Bruce. – Agora você está mais velho e seu corpo mudou. Todos têm limitações físicas a vencer.
Hyams continuou argumentando, comparando-se a Bruce.
– Isso é fácil para você dizer. Se alguma vez alguém nasceu com habilidade natural para as artes marciais, esse alguém é você – insistiu.
– Vou lhe contar algo que pouca gente sabe: tornei-me um praticante de arte marcial apesar das minhas limitações – confidenciou-lhe Bruce, com um sorriso. – Por certo você não se deu conta, mas minha perna direita é quase 2,5 centímetros mais curta que a esquerda. Isso determinou minha melhor postura: o comando do pé esquerdo. Percebi, então, que, devido à perna direita ser menor, eu levava vantagem em certos golpes de pé, pois a pisada desigual deva-me um impulso maior. Além disso, uso lentes de contato. Desde criança sou míope, o que significa que, quando estava sem óculos, tinha dificuldade em ver meu adversário à distância. No início, voltei-me para o estudo de wing chun, que é uma técnica ideal para a luta corpo-a-corpo. Aceitei minhas limitações como elas eram e tirei proveito delas. É isso que você precisa aprender. Você diz que é incapaz de dar golpes de pé acima da cabeça antes de longo aquecimento, mas o problema efetivo é: importa realmente dar golpes dessa altura? A verdade é que, até recentemente, os praticantes de artes marciais raramente davam golpes de pé acima dos joelhos. Esses golpes à altura da cabeça são em sua maioria para exibição. Por isso, aperfeiçoe seus golpes de pé no nível da cintura e eles se tornarão tão formidáveis que você nunca precisará de golpes mais altos. Em vez de tentar fazer tudo bem, faça com perfeição apenas as coisas que pode. Embora a maioria dos praticantes de artes marciais competentes tenha gasto anos dominando centenas de técnicas e movimentos, num ataque, ou kumite, um campeão não usa efetivamente mais do que quatro ou cinco técnicas, sempre. São essas técnicas que ele aperfeiçoou e das quais sabe que depende.
Hyams protestou.
– Mas permanece o fato de que o meu verdadeiro adversário é a idade – insistiu.
– Pare de se comparar, aos 45 anos, com o homem que você era aos 20 ou 30 – disse Bruce. – O passado é uma ilusão. Você precisa aprender a viver no presente, aceitando-se como você é agora. O que lhe falta em flexibilidade e agilidade cabe-lhe suprir com conhecimentos e exercício permanente.
– Depois dessa conversa, Hyams não perdeu mais tempo tentando golpear com os pés acima da cabeça; em vez disso, trabalhou golpes à altura da cintura, até agradarem ao próprio Bruce. Em fins de 1965, Bruce foi até a casa de Hyams, despedir-se, pois partiria para Hong Kong, onde pretendia se tornar um astro do cinema – disse Marcelo Quintela.
– Lembra-se da nossa conversa sobre limitações. Pois bem, estou limitado pelo meu tamanho e dificuldades no inglês, além de ser chinês e nunca ter havido um grande astro chinês nos filmes americanos. Gastei os últimos três anos estudando cinema e creio que chegou a hora para um bom filme de artes marciais, e eu sou o mais qualificado para estrelá-lo. Minhas aptidões superaram minhas limitações – disse Bruce.
– As aptidões de Bruce superaram efetivamente suas limitações, e, até sua morte prematura, ele foi um dos maiores astros do cinema. Sua carreira foi um exemplo perfeito do seu ensino: na medida em que descobrimos e desenvolvemos nossos pontos fortes, eles se impõem às nossas fraquezas – conclui Hyams, no seu livro O Zen nas Artes Marciais.
– Pois bem – disse Marcelo Quintela – quando fiz o curso de medicina chinesa em São Paulo, entre os meus extraordinários professores havia um, o professor Camarão, um japonês que era ouvido e procurado até pelos seus colegas de cátedra. Ele dominava um modo único de pegar as agulhas durante uma sessão, todas as dez de um pacotinho, colocando-as entre os dedos anelar e mindinho, e aplicando-as em questão de segundos. Tentei imitá-lo na minha primeira tentativa, tendo como paciente uma gata que eu estava comendo. Uma semana depois eu ainda encontrava agulhas no chão da sala do meu apê. Desisti de imitar o professor Camarão. Ele também introduz as agulhas numa batida seca, com a ponta do dedo médio, que apoia na unha do indicador, soltando-o como um martelo, bam!, e assim introduzindo a agulha, por meio do mandril, em milésimos de segundo. Isso eu tentei, gostei, e é o que faço – continuou Marcelo Quintela, que gostava muito de falar. – A medicina tradicional chinesa, que se baseia no Tao, o caminho, o equilíbrio entre yin e yang, conta com know-how em torno de 5 mil anos. Holística, trata o paciente como um todo, e considera a dimensão da matéria tão somente energia, como, aliás, confirmou o físico alemão Albert Einstein. Só as possibilidades com as agulhas já são ilimitadas, quando mais se considerarmos outros pilares da MTC, como alimentação correta, fitoterapia, tuiná, tai chi chuan, que é meditação em ação, e um mundo de conhecimentos terapêuticos da filosofia oriental, que é, também, religião. Assim, o acupunturista terá inesgotável manancial de possibilidades para tratar o paciente. E da mesma forma como pensava Bruce Lee, o acupunturista não deve perder tempo com algo que o Tao está a lhe dizer que não é importante; precisa somente concentrar-se naquilo em que mais sente fluir seu talento, mesmo que seja apenas sorrir – disse, entremeando o monólogo com grandes garfadas do saboroso bacalhau.
O prédio da Fundação Holística pertencia à família do professor Marcelo Quintela, e fora adaptado para a escola. Bem conservado e iluminado, o ambiente era silencioso e fresco. O arquivo ficava numa sala no térreo, pegada à secretaria. Maria das Dores Craveiro mostrou a Ricardo Larroyed o armário onde eram guardados todos os documentos do ambulatório. O policial remexeu o armário durante pelo menos meia hora. Às 19, Maria das Dores o avisou que Marcelo Quintela acabara de chegar. Ricardo guardou na sua pasta algumas cópias que fizera na impressora Xerox e se dirigiu para a sala dos professores. Estavam todos lá. Havia alguma coisa diferente em Emanoel Vorcaro. Os olhos dele brilhavam.

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

CRÔNICA/Café

RAY CUNHA

Durante muito tempo, o Café Doce Café reinou como um dos pontos mais aprazíveis do meu circuito nas entranhas de Brasília. Localizado no átrio do Conjunto Nacional, constituía-se em mirante de onde podia apreciar, sem ser notado, as mulheres lindas que passavam por ali, algumas tão monumentais que faziam justiça à arquitetura de Oscar Niemeyer. Muitas delas, antes de sumir nos labirintos do shopping, tornavam o dia mais luminoso, fazendo uma parada no café. De lá, eu costumava ir à antiga livraria Sodiler – depois, La Selva, seguida de uma loja de calçados, e, agora, parece-me que uma loja de roupas.

Um dia, arrancaram a maior parte do balcão de mármore do Café Doce Café e o substituíram por vidro, para que as pessoas pudessem ver os salgadinhos. Continuei a frequentá-lo, mais pelo mirante do que pelo café, que, aliás, sempre foi robusta, aquele tipo amargo, barato, das lanchonetes populares. Durante algum tempo, mantiveram as colherinhas de metal e as xícaras e pires clássicos. Mas isso não durou muito; as colheres foram substituídas por hastes de plástico, e os pires e xícaras de desenho clássico foram-se trincando, quebrando, até serem substituídos por louça horrorosa, além de que o balcão de mármore sofreu nova e drástica redução. Assim, tive que descobrir novos mirantes, como o Kopenhagen, no segundo piso do shopping, ao lado da livraria Saraiva.

A propósito, o problema da Saraiva é música ambiente. Há sempre um desses dançarinos-cantores unissex guinchando nos alto-falantes da loja. Voltando à Kopenhagen, é bastante agradável, os móveis são de palhinha e podemos descortinar o passa-passa numa grande área do shopping – verdadeiro laboratório literário. Além disso, a colherinha é de metal e o café, blend.

Sou apreciador de café espresso. Comecei a degustá-lo na companhia de um amigo de infância, o jornalista Ribamar Teixeira, que, como eu, é brasiliense de Macapá. Eu já li bastante sobre café e fiz dois cursos de barista, por curtição, com o ítalo-brasileiro Antonello Monardo.

Café espresso recebeu esse nome porque foi inventado pelos italianos. É tirado por pressão, daí o “espresso” italiano, que, vertido para o português, virou, para muita gente, “expresso”, o que lhe dá a conotação de que é um café tirado rapidamente. Muitos não tomam espresso por duas razões: ou estão habituados ao chafé de botequim, conhecido como carioca, ou acham que é muito forte. Neste caso, é só tomar um curto.

É o seguinte: café contém mais de mil essências nutritivas. Ao se tirar um espresso, essas essências são encontradas somente na primeira parte que cai, ou seja, na metade da xícara de 30 ml; o restante é pura cafeína. Assim, um curto é a meia xícara do primeiro café tirado – trata-se, portanto, de um café encorpado, aromatizado e revigorante.

Tem mais uma questão importante. Há dois tipos de café: robusta e arábica. O robusta é resistente à praga e por isso mais barato, mas tão amargo que só entra com muito açúcar. É servido em toda parte; somente as cafeterias de primeira linha servem arábica, um café encorpado, aromático e naturalmente adocicado.

O mais famoso do mundo é o italiano Illy, blend dos melhores arábicas do planeta, especialmente do sul de Minas Gerais. A fábrica fornece sachê de Illy para todo o mundo. A primeira vez que experimentei um Illy foi no Saborela, na 112 Norte, Bloco C, Loja 38, tirado pelo barista Bruno Kzam.

O café arábica do sul de Minas Gerais, maior produtor do Brasil (e este, maior produtor do mundo), é um dos melhores do planeta. É leiloado. Oitenta por centro ficam com os alemães. Os japoneses também são grandes compradores. Em Tókio, um espresso custa pelo menos US$ 5.

Meu café preferido é 3 Corações, gourmet (arábica e sem impurezas). Eu mesmo o tiro ao coador, ainda de madrugada, quando me levanto. À tarde, costumo tomar um espresso, confortavelmente instalado num mirante.

domingo, 12 de novembro de 2017

CRÔNICA/Negra em vestido de seda

RAY CUNHA

Degustava um Illy no café de uma livraria no Pátio Brasil quando a vi. Senti imediatamente seu perfume, que se misturou ao sortilégio do espresso, o aroma dos melhores arábicas do mundo. À sua passagem, infinitas possibilidades se iluminaram; de repente, velhos prazeres esquecidos, projetos de viagens adiados, sensações adormecidas, acordaram à sua passagem.

Entendo que seda é o melhor tecido para sugerir as curvas de uma mulher, para desenhar, na nossa imaginação, seus encantos inacessíveis, para exalar a química do prazer que captamos com as antenas dos sentidos, e ela trajava um vestido de seda amarelo, estampado com rosas colombianas vermelhas.

Seu andar – andar, não, trote – tinha a cadência das potras nascidas em cavalariça de ouro, trotar de bailarina clássica, o caminhar de mulheres sobre saltos tão altos que as fazem andar na ponta dos pés. E o vestido de seda lhe desenhava as formas no seu passeio pelo shopping.

Tudo foi num instante, mas na dimensão em que a vi pude examiná-la minuciosamente. O primeiro impacto que sofri ao vê-la foi uma sensação tátil: a sua pele de jambo maduro, sedosa como seu vestido. Tinha nariz português, boca de negra e olhos verdes. Dentro do instante intenso, viajei, instantaneamente, à velocidade da luz, à Estação das Docas, em Belém, e fui também à Macapá, onde a Linha Imaginária do Equador faz esquina com o maior rio do mundo, e o rio Amazonas me conduziu ao Caribe de Gabriel García Márquez.

A negra misteriosa passou rente a mim e me ofertou seu perfume, que identifiquei imediatamente: Chanel 5, o que mais gosto de aspirar na pele feminina. Ela passou tão rente a mim que tive a sensação de que a seda do seu vestido roçou no meu cérebro. Quis ficar ali, naquela eternidade, sentindo-me cair para cima, numa sequência infinita de gozos múltiplos, só de observá-la, mas o compromisso na embaixada de Portugal acertou-me em cheio na cabeça, como um tiro que nos reconduz à rotina. Dali a pouco estaria bebericando vinho do Porto no Instituto Camões.

sábado, 11 de novembro de 2017

CONTO/A aventura do leão Cândido em Brasília

Este conto está à espera de um artista para ilustrá-lo e se tornar livro!

RAY CUNHA

Era uma vez, no Quênia, país da África oriental, um guia chamado Lili, que ganhava a vida conduzindo expedições ao coração da selva. Um dia, Lili participava de uma expedição policial em perseguição a caçadores, mas não puderam impedi-los de matar uma leoa e fugissem a seguir. Ao se aproximar da leoa, Lili descobriu que havia um gatinho ao lado dela. O gatinho estava chorando. Lili o pegou ao colo e pediu ao chefe da expedição autorização para adotar o gatinho, no que foi atendido.

Cândido Lili, como foi batizado o leãozinho, era muito amoroso e logo fez amizade com todos os animais da fazenda de Lili. Nem as galinhas tinham medo dele, pois Cândido foi educado a não matar sequer uma mosca. Além disso, ele não comia carne vermelha, mas apenas filé de peixe cozido, com arroz integral, e uma ração que Lili inventou, à base de soja. Cândido gostava de tudo da fazenda, sobretudo da companhia de Lili, tanto que o imitava muito bem, de tal modo que acabou aprendendo a se vestir e a falar português do jeitinho de Lili, que nascera em Brasília. À noitinha, os dois sentavam-se na varanda e o guia contava para Cândido como era a vida na capital brasileira.

– Eu gosto de ir ao Conjunto Nacional, um grande shopping defronte ao Teatro Cláudio Santoro, muito agradável, onde sempre compro livros na livraria Leitura, e almoço também lá mesmo. No Brasil, temos um prato, a feijoada, que foi inventada pelos nossos antepassados africanos. Você sabia, Cândido, que os africanos são também nossos antepassados, além dos índios e portugueses?

Cândido ouvia, sonhador, o pai adotivo.

– Pois é, Cândido, a feijoada é composta de feijão preto; pés, rabo e orelha de porco; e toucinho defumado, com arroz e couve frita. Se a pessoa quiser, pode pôr também um pouquinho de caldo de feijão com pimenta.

Cândido sentia água na boca.

E de tanto Lili contar como era Brasília, Cândido jurou a si mesmo que um dia visitaria aquela cidade tão encantadora, sobretudo para se empanturrar na praça de alimentação do Conjunto Nacional.

O desejo de Cândido era tão sincero que, como acontece a todos os desejos que nascem no coração, tornou-se realidade. Filho único, Lilia, todos os anos, passava as festas natalinas com seus pais, em Brasília, e resolveu, naquele ano, levar Cândido consigo.

Algumas providências e cuidados tiveram de ser tomados para a viagem. Mas como Lili tivesse muito prestígio junto ao governo do Quênia não foi difícil convencer as autoridades quenianas a fornecerem um passaporte a Cândido, pois eles mesmos estavam convencidos de que Cândido era um gigante parecido a um leão. E depois, a cada dia que passava, Cândido ficava mais parecido a um homem.

Durante a viagem, tudo correu bem. Cândido se comportou como um cavalheiro, tanto que ninguém desconfiou dele. Voltavam-se para vê-lo devido ao seu tamanho, ao sobretudo, às luvas, os óculos escuros e o chapéu panamá, o que lhe dava um ar misterioso.

Os pais de Lili sofriam de alergia a gatos, qualquer espécie de gato. Além disso, poderiam morrer de susto ao verem Cândido à vontade, em casa. Assim, Lili e Cândido se hospedaram no Hotel Nacional, o hotel mais famoso da cidade. Na noite de Natal, Lili foi cear com seus pais e Cândido ficou no hotel, vendo televisão, pois ele adorou os programas das TVs brasileiras, e no Ano Novo, Lili o levou, à meia-noite, à Esplanada dos Ministérios, para verem de perto a queima de fogos. Foi tudo inesquecível para Cândido: um concerto no Teatro Nacional, a visita à Galeria de Arte da Caixa Econômica Federal, um filme de Glauber Rocha, Deus e o diabo na terra do sol, em DVD, e algumas idas ao Conjunto Nacional, onde Cândido repetia vinte feijoadas. Quando não estava passeando com Lili, Cândido permanecia o tempo todo no Hotel Nacional, para não dar na vista. Lia muito Euclides da Cunha, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Machado de Assis, Guimarães Rosa, Érico Veríssimo, Márcio Souza, Dalcídio Jurandir, João de Jesus Paes Loureiro e Benedicto Monteiro, pois queria saber tudo sobre o Brasil, principalmente a Amazônia, pátria de Benedicto Monteiro, o grande escritor paraense.

Cândido fazia trinta refeições diárias, a maioria das quais comprada por Lili fora do hotel, para não dar na vista. Mas numa sexta-feira, Lili foi visitar seus pais e na volta ficou preso em um gigantesco engarrafamento, por duas horas, o que atrasou na compra da comida de Cândido. No começo da tarde, cansado de ler seus autores prediletos, de ver televisão e faminto, Cândido resolveu almoçar no Conjunto Nacional.

– Morrerei de tédio, se não morrer antes de fome. Preciso ir ao Conjunto Nacional comer trinta deliciosas feijoadas – disse a seus botões.

Dito e feito. Pegou o sobretudo, as luvas, os óculos escuros e o panamá e pouco depois estava num táxi a caminho do Conjunto Nacional. A praça de alimentação do shopping é muito aprazível, embora, naquele momento, estivesse lotada. Mas nosso herói teve a sorte de encontrar uma mesa ocupada somente por uma pessoa, um velhinho muito atencioso. Reservou uma cadeira e foi se servir. O velhinho assobiou quando viu o prato de Cândido, que sentou seu corpanzil e se pôs a comer. Em pouco tempo havia uma pilha de pratos na mesa e o velhinho, de queixo caído, olhando para Cândido.

Após vinte e nove feijoadas, o cinto de Cândido começou a ficar apertado, as patas começaram a doer e o calor ficou insuportável. E como também Cândido tivesse posto muita pimenta na última feijoada, estava com a boca pegando fogo. Então, esquecido das recomendações de nunca tirar em público o sobretudo, os sapatos, as luvas, os óculos escuros e o panamá, de nunca ejetar as garras e arreganhar a bocarra, livrou-se das roupas quase que num só golpe, além de expelir as poderosas garras e emitir um despropositado rugido de prazer.

Foi o caos. Em alguns segundos a praça de alimentação ficou vazia. Era gente voando para todos os lados. O velhinho que estava à mesa de Cândido nem pegou sua bengala e foi o primeiro a alcançar as escadas. Uma senhora gorducha e de sapatos muito altos chegou às escadas em segundo lugar, e sem deixar cair nada do enorme prato que levou consigo. A gritaria era muito grande, principalmente dos pais das crianças, que teimavam em ver Cândido de perto.

Nesse meio tempo, Lili, preocupado, finalmente saiu do engarrafamento e voou para o hotel. Encontrou um bilhete sobre o criado mudo da cama de Cândido: “Estou esperando o senhor na praça de alimentação do Conjunto Nacional. Cândido”.

Lili saiu novamente a jato e chegou ao Conjunto Nacional pouco antes dos bombeiros. Subiu até o piso da praça de alimentação. Não havia vivalma por ali. Então Lili viu as roupas de Cândido, juntou-as e procurou-o. Acontecera o seguinte: logo depois que o pessoal começou a correr, Cândido foi até uma torneira de Coca-Cola e bebeu três litros de refrigerante, depois, deitou-se no chão e adormeceu. Quando Lili o encontrou, Cândido estava roncando. Lili o sacudiu.

– Ah! Até que enfim o senhor veio para me fazer companhia – disse Cândido.

– Não há tempo para mais nada. Os policiais e bombeiros estão vindo aí para prendê-lo, ou acertá-lo igual os caçadores fizeram com sua mãe. Vista-se rapidamente, não há tempo a perder. Temos de sumir daqui. Vamos!

Cândido era dócil e obediente, e pelo tom de voz de Lili, que não era de perder a serenidade, compreendeu que acontecera algo grave. De modo que quando a polícia e os bombeiros chegaram os dois já haviam deixado o Conjunto Nacional por uma das saídas laterais.

Lili e Cândido voltaram no dia seguinte para o Quênia.

Agora, Cândido demorava-se mais na selva do que em casa. Um dia, disse a Lili que ia lhe apresentar Elza, uma bela gata, digo, leoa, com quem se acasalou e teve muitos gatinhos. Lili, agora, não é mais guia. Casou-se com uma princesa africana chamada Loló e já tem sete candanguinhos da gema, pois os meninos nasceram todos no Hospital Regional da Asa Sul. Lili mudou-se para Pirenópolis, uma cidadezinha goiana no Entorno de Brasília, onde construiu um pesque-pague muito movimentado, que vai de vento em popa. Todos os anos, Lili, Loló e os sete Lilicos vão ao Quênia visitar Cândido, que ficou morando na fazenda de Lili e tem uma prole tão grande quanto à de Lili e Loló. Então batem papo sobre os velhos tempos e morrem de rir da aventura em Brasília.