terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

Velhice

Ray Cunha: No cume da montanha não há nada, exceto vento
e frio. Subimos até lá apenas para tomarmos conhecimento
de que chegou a hora de realizarmos a verdadeira subida
A velhice perpassa idades, gêneros, etnias, regiões e sociedades. Ela incomoda quase todo mundo. Quanto menos espiritualizada é a pessoa, mais repugnante lhe parece a velhice, mais merecedora de desprezo, de nojo. Mas, afinal, o que é a velhice? Por que inspira tanta repugnância? Por que é tão relegada ao lixo?
Envelhecer é morrer fisicamente. Apodrecer. Definhar, adoecer, desfazer-se em material pútrido, gritar, berrar, apegar-se à matéria, recusar a natureza do espírito, a luz. Como dizem os budistas: o corpo, a matéria, é nada. Todos nós nascemos com data de validade. Morrer é o destino do corpo carnal. E se alguém resiste a viver um século, estará só ruínas, material orgânico se desfazendo.     

A vida é como deslizar em um tobogã, que vai ficando cada vez mais escorregadio e inclinado. São as células morrendo, a pele se enrugando, os ossos encolhendo, os órgãos falindo, até esvair-se a energia vital e surgir o abismo. Só depois disso há luz.

O desdém que alguns jovens e adultos dispensam aos velhos decorre de dois fatores: um, a animalidade dos jovens. Nela, a morte, e a velhice, não existem; no seu mundo só há beleza, vigor, primavera. O outro fator é o apego, a ilusão de que o corpo carnal é para sempre.

Notaram que as crianças não excluem os velhos? Pois elas ainda têm aberto o portal que transcende as quatro dimensões, e que só pode ser transposto por meio da inexistência do apego.

O fato é que o tempo nem é importante. Importante é a energia. Há velhos que jamais deixam de trabalhar, de produzir, de ajudar os jovens a construírem seus mundos, e de amar. E há os que morrem mentalmente, mas seus corpos continuam vagando por aí, deteriorando-se. A energia está na mente; os corpos são apenas prisão, da qual nos libertamos porque amamos.

No cume da montanha não há nada, exceto vento e frio. Vamos até lá apenas para tomarmos conhecimento de que chegou a hora de realizarmos a verdadeira subida, transcender o tempo. De tanto ouvir o riso das crianças, de tanto observar as rosas, de sentir os jasmineiros umedecendo as noites tórridas do trópico, de inalar a fragrância do mar, que inunda minha alma, de tanto montar a luz no cataclismo do primeiro beijo, acabei por sentir que a eternidade é agora.

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

A idade da razão

Ray Cunha, em 2019, de panamá comprado em Pirenópolis/GO

BRASÍLIA, 5 DE FEVEREIRO DE 2020  Nasci em 7 de agosto de 1954, em Macapá, cidade encravada no cruzamento da Linha Imaginária do Equador e da margem esquerda do rio Amazonas, então um povoado ribeirinho afogado no meio do mundo, mas nunca me senti emparedado na solidão dos povoados amazônicos, porque, aos 5 anos, os gibis, e depois revistas de informação e livros, de todos os gêneros, me inocularam o vírus da aventura, de modo que aos 13 anos eu já tinha viajado meio mundo, e, aos 14, conversava sobre filosofia e arte, e comecei a escrever, e, aos 17, recebi meu batismo de fogo, segundo o poeta Isnard Brandão Lima Filho, lançando o livro de poemas Xarda Misturada, juntamente com Joy Edson e José Montoril. Verdade seja dita, meus poemas eram os mais fracos do livro, mas, naquele momento, tiveram poder propulsor, o poder de, mesmo sem nem carteira de identidade, me mandar de Macapá, que começava a me sufocar. Então parti de barco para Belém, de onde peguei carona para Brasília e para o Rio de Janeiro, e passei 10 anos na estrada.

Aos 27 anos, cansado de navegar e de rodar, e ainda tonto de um casamento frustrado por absoluto fracasso meu, comecei o curso de jornalismo na Universidade Federal do Pará (UFPa), em Belém, quando reencontrei um velho amigo, a quem chamarei de B. B media um metro e noventa, por aí, e pesava uns 100 quilos, tinha os olhos claros e exercia fascínio sobre as mulheres, inclusive casadas. Embora depressivo e dipsomaníaco, quando começava a falar, numa linguagem erudita e pessimista, assustava todo mundo. Nossa amizade se desenvolveu porque havia uma coisa que interessava a ambos: livros, e escritores. Li muitos livros recomendados por B, e gostei de todos, como O Apanhador no Campo de Centeio, de J. D. Salinger, que comecei a ler em uma livraria de Niteroi, bebendo Bohemia. Além de um dos leitores mais argutos que conheci, B era também mais experiente do que eu, e, à sua maneira, sábio.

Certo dia, numa das pausas da bebida, B profetizou que nossa geração só se tornaria sábia após os 60 anos. Estive, muitas vezes, à beira do abismo; caí no poço dos prazeres mais carnais, e frequentei aquela zona cinzenta dos alcoólatras, dos desesperançados, dos desesperados, dos danados, dos mortos-vivos. Contudo, há sempre alguém, ou algo – uma lembrança, uma voz, o voo em um sonho, uma rosa, o azul, o mar, personagens de ficção –, me levantando.

Já faz tempo que comecei a descer a ladeira. Às vezes, enfrento trechos muito inclinados, outros, alagados, mas cada vez mais encontro bosques e manhãs ensolaradas. Se antes, aos 21 anos, sentia-me leão, hoje, sinto-me leão de asas, como se montasse a luz, e comecei a descobrir o segredo da velocidade quântica, alimentado pela visão de uma rosa que se desnuda, do azul que sangra, por jasmineiros que choram nas noites ardentes, pelo som da Terra no espaço.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

A garota marcada para morrer

A atriz inglesa Claire Foy na pele de Lisbeth Salander

BRASÍLIA, 4 DE FEVEREIRO DE 2020 – Acredito que os livros clássicos são os que moldaram a literatura, tal como hoje a conhecemos, além de mergulharem na condição humana, o que os tornam atemporais, e de utilizarem as palavras como bisturis de luz. E há também os livros revolucionários, aqueles que oxigenam a literatura, como o fez Ernest Hemingway com O Sol Também se Levanta, em 1926, só para citar um exemplo. Esse livro afetou meio mundo em todo o planeta, especialmente nos Estados Unidos, onde havia um puritanismo do caraca.

Mas, além dos fatores citados, há ainda uma outra coisa que alça alguns autores a ídolos como os de rock, incensados e bajulados. Quando Hemingway estava no auge da fama, vendendo como poucos e badalando no jet set internacional, havia uma razão para isso; talvez duas. Principalmente O Sol Também se Levanta, Adeus às Armas e Por Quem os Sinos Dobram eram livros que retratavam fielmente a época em que foram publicados.

Assim é com autores como Stieg Larsson e David Lagercrantz, que criaram personagens pós-modernos. Hackers, espiões, mafiosos, intrigas políticas capazes de abalar governos ou de provocar uma terceira guerra mundial, psicopatas que agem como hienas, mulheres tão extraordinárias que são capazes de humilhar o mais empedernido machão, furtos no mundo das finanças de deixar bilionários de cabelos em pé, manipulação genética e informática de ponta.

Larsson, nascido em 15 de agosto de 1954 e morto em 9 de novembro de 2004, foi um dos mais influentes jornalistas suecos. Aos 50 anos de idade, Larsson subia os sete lances de escada até o seu escritório na revista Expo, que fundou, pois o elevador estava quebrado, quando morreu de ataque cardíaco. Mas, na véspera, ele havia deixado com seu editor uma trilogia policial, a Série Millennium, que se tornou um estrondoso sucesso de crítica e de público em todo o mundo.

Em 2008, foi publicado Os Homens que Não Amavam as Mulheres; e, em 2009, A Menina que Brincava com Fogo e A Rainha do Castelo de Ar. Em 2013, o escritor sueco David Lagercrantz foi convidado pela editora Norstedts a escrever mais três livros, envolvendo as mesmas personagens. Assim, em 2015, saiu o quarto volume, A Garota na Teia de Aranha. Em 2017, saiu O Homem que Buscava a sua Sombra, e, em 2019, A Garota Marcada para Morrer.

Alguns dos livros foram adaptados para o cinema, que recriou a personagem principal, a hacker Lisbeth Salander. Talvez o melhor qualificativo para Salander seja “apaixonante”. “Maravilhosa” também pega bem. Mas o fato é que ela é uma justiceira definitiva. Como hacker, está acima de gênio: é uma deusa. E é aquele tipo de mulher que somente homens de verdade conseguem se aproximar dela. Machões, principalmente do tipo covarde, que gosta de torturar mulheres, perdem os bagos. E já disse, em outro artigo, que Salander é o tipo de mulher que dá prazer na gente fazer um café na cozinha, servi-lo, só para bater papo com ela, mesmo que ela não fale muito.

Há também uma personagem masculina que enobrece a profissão de jornalista, Mikael Blomkvist, diretor da revista Millenium, que detesta o abuso de poder. No final das contas, a saga é uma crítica social da Suécia, com o fim da liberdade individual imposto pela tecnologia e a violência contra as mulheres, que continuam sendo tratadas como boas apenas para sexo. Os seis volumes já venderam 100 milhões de exemplares mundo afora, é sucesso de bilheteria no cinema e na televisão, e já foi até para os quadrinhos. David Lagercrantz declarou à agência France Presse: “Estou convencido de que Lisbeth é imortal e que continuará vivendo de uma forma, ou de outra, na televisão, no cinema, ou em outros livros”.

Os três livros de Stieg Larsson são de mais de 500 páginas cada um, mas a gente os lê quase de um fôlego, de tão bons. Lagercrantz pega mais leve, mas nem por isso perde o ritmo. Em A Garota Marcada para Morrer, Lagercrantz põem fim à série, e deixa Salander, que tinha tudo para morrer, viva.

sábado, 1 de fevereiro de 2020

Macapá

amazon.com

Clube de Autores

BRASÍLIA, 1 DE FEVEREIRO DE 2020 – No seu novo romance, JAMBU (Clube de Escritores/amazon.com, 2019), Ray Cunha escreve sobre Macapá: “Em 1738, colonos portugueses instalaram na margem esquerda do estuário do rio das Amazonas um destacamento militar, a Praça São Sebastião, depois Veiga Cabral, onde, em 4 de fevereiro de 1758, foi levantado o Pelourinho, símbolo do implacável poder lusitano, na presença do capitão-general do Estado do Grão-Pará e Maranhão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, fundando a Vila de São José de Macapá e selando o fim da nação que dominava aquela beirada de rio, o povo tucuju, do tupi tucumã, palmeira natural da Amazônia, de doces frutos oleosos, matéria-prima para suco, licor, mingau e sorvete.

“Em 1764, Portugal deu uma demonstração do seu poderio na Amazônia, iniciando a construção de projeto do engenheiro militar italiano, sargento-major de Infantaria Enrico Antonio Galluzzi de Mantova, ou simplesmente Gallúcio: a Fortaleza de São José de Macapá. Em 2 de janeiro daquele ano, o governador e capitão-general do Estado do Grão-Pará e Maranhão, Fernando da Costa de Ataíde Teive, saiu de Belém e foi até a vila de São José de Macapá, juntamente com Gallúcio, para examinar o terreno, e, finalmente, aprovar a planta geral da nova fortaleza do império português, que teve sua pedra fundamental lançada naquele mesmo ano, na tarde de 29 de junho, sob a invocação de São Pedro, na presença do governador Fernando da Costa de Ataíde Teive; do comandante da Praça, coronel Nuno da Cunha Ataíde Varona; e de Gallúcio e demais autoridades civis e religiosas de Macapá.

“As pedras da Fortaleza foram arrancadas da Cachoeira das Pedrinhas, no rio Pedreira, distante 32 quilômetros de Macapá; descidas para o rio numa rampa em torno de 10 metros de declive, eram transportadas em embarcações pelo Amazonas até Macapá. Cada jagunço tomava conta de quatro escravos, que, fracos pelo trabalho impossível, eram rasgados a chicotadas. Muitos morreram supliciados, famintos, sem energia, e alguns conseguiram fugir para o quilombo do Ambé. Em 27 de outubro de 1769, Gallúcio morreu de malária e a direção dos trabalhos foi assumida pelo capitão Henrique Wilckens, até à chegada do sargento-mor engenheiro Gaspar João Geraldo de Gronfeld. Em 1777, morre o rei D. José, aos 27 anos, e o marquês de Pombal, então mentor do poderio português na Amazônia, e protegido por D. José, é exonerado por D. Maria I (1777-1816), que afunilou os gastos com a Fortaleza, de modo que ela só foi inaugurada em 19 de março de 1782, dia do seu padroeiro, São José, 18 anos depois do início da sua construção.

“Com 84 mil metros quadrados, em formato de polígono quadrangular, muralhas de oito metros de altura, seu portão principal fica a oeste, com duas pontes sobre um fosso, de que restam os vestígios, e que, originalmente, seria inundado em todo o perímetro da construção. Pesquisa comprovou que na parte erguida sobre terreno alagado foram utilizadas estacas de acapu, o aço do reino vegetal. Na primeira metade do século XX, a Fortaleza foi abandonada, e classificada, durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), como fortificação de terceira classe. Em 1926, suas ruínas foram visitadas pelo presidente eleito Washington Luís. Em 1943, é criado o Território Federal do Amapá, e, em 1946, foi instalado na Fortaleza o Comando da Guarda Territorial, então a polícia do Território Federal. Para isso, houve um trabalho de capina interna e externa, com a retirada dos arbustos que vicejavam nas muralhas, bem como a derrubada das árvores que cresciam nos terraplenos, e que acarretaram danos estruturais. Também foram reconstruídos os oito edifícios ao redor da praça, então completamente deteriorados, nos quais substituíram telhados, portas, janelas e portões em madeira, pisos, muretas e rampas de acesso, e foram desobstruídos os canais de drenagem de águas pluviais. Em 8 de julho de 1950, uma comissão do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan) tombou o símbolo maior dos macapaenses, incluindo 54 canhões. A Fortaleza serviu ainda de hospedaria a famílias de imigrantes; de cadeia aos presos da Justiça; abrigou a Imprensa Oficial, o pelotão do Vigésimo Sexto Tiro de Guerra, a União dos Negros do Amapá e o Museu Territorial; e virou palco das celebrações de datas cívicas, marcadas por salvas de tiros dos canhões, desfiles cívicos e bailes. Com a Ditadura dos Generais (1964-1985), voltou a abrigar o comando da Guarda Territorial e passou a ser utilizada como presídio político, mas também como Clube Social do Círculo Militar, em prédio no entorno leste. Em 1975, a Guarda Territorial foi transformada em Polícia Militar e sediada em prédio próprio, após uma onda de terror na cidade, que, segundo se comenta até hoje, teria sido arquitetada pelas autoridades do Território Federal com o intuito de forçar a criação da Polícia Militar. Em 1979, a Delegacia do Serviço do Patrimônio da União (DSPU) entregou a Fortaleza ao Governo do Território Federal do Amapá. Em 1988, a Constituinte transformou o Território Federal em Estado do Amapá. Em 1999, após anos de restauração, a Fortaleza é transformada em espaço de cultura e lazer para a população em geral.

“Construída para resistir a uma força semelhante à da marinha inglesa do século XIX, nunca foi atacada, exceto por um dos flagelos da Amazônia, a malária, também conhecida como paludismo, impaludismo ou maleita, doença infecciosa transmitida pela fêmea infectada do mosquito Anopheles e provocada por protozoários do gênero Plasmodium, que, no sistema circulatório do hospedeiro, vai parar no fígado, onde se reproduzem, provocando febre, dor de cabeça e nas articulações, vômito, anemia, icterícia, hemoglobina na urina, lesão na retina e convulsões, em ataques paroxísticos, com sensação súbita de frio intenso, seguida por calafrios, febre e sudação, paralisia do olhar, opistótono, convulsão, que pode progredir para coma ou morte. Tradicionalmente, os casos graves são tratados com quinino administrado por via intravenosa ou intramuscular. Não existe vacina contra a malária. As complicações a quem resiste à doença são estresse respiratório e desconforto psicológico.

“Assim, a Fortaleza, maior ícone dos macapaenses, é a tradução perfeita de Macapá. Construída por escravos, negros e índios, sob o obsessivo domínio português, foi o cadinho no qual se forjou a etnia macapaense. Os portugueses cruzaram com os africanos e geraram mulatos, e fornicaram com os índios, formando uma população de mamelucos; os africanos fundaram o distrito de Curiaú e o bairro do Laguinho, misturaram-se com os índios e legaram cafuzos; e mulatos, cafuzos e mamelucos misturaram-se, fechando o círculo, numa diversidade étnica viva nas ruas de Macapá, nas nuanças de peles que vão do alabastro ao ébano, passando pelo bronze e jambo maduro, unidos pelo sotaque caboco: a fusão do português falado em Lisboa, doces palavras tupis, línguas africanas, patoá das Guianas, tudo triturado em corruptela”.

Se no primeiro romance do escritor, A CASA AMARELA, a Fortaleza de São José de Macapá, e a própria cidade, localizada no cruzamento da Linha Imaginária do Equador com o maior rio do planeta, o Amazonas, servem, nos anos de 1960, como geografia, física e humana, para ambientar os rangidos que se ouviam, então, inclusive de dentes, em JAMBU, Ray Cunha transforma a capital do estado do Amapá em um buraco negro, onde cabem toda a Amazônia, e as discussões acaloradas em torno dela, incluindo a presença, na Hileia, de Ovnis e ETs, e até mesmo o nascimento do país do Cruzeiro, que começou lá por cima.

Assim, enquanto Macapá, em A CASA AMARELA, surge, embora trágica, como um grande baile nos anos revolucionários e dourados de 1960, em JAMBU, a cidade do meio do mundo sedia o romance, e a Amazônia, servida para ser degustada, como diz o título do romance, em uma cuia de tacacá.


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